Ler o livro O Operador – Como (e a mando de quem) Marcos Valério irrigou os cofres do PSDB e do PT, do repórter Lucas Figueiredo, é como ser puxado pela manga do casaco: “Lembra-se do mensalão? Pois é… Nós já tínhamos esquecido tanta coisa…” Os personagens desfilam: políticos do PSDB mineiro e dirigentes nacionais do PT, integrantes da base aliada do governo Lula, banqueiros, espiões, secretárias, entregadores de dinheiro, policiais, motoristas, procuradores, artistas de CPIs.
Nesta entrevista ao Observatório da Imprensa, Figueiredo resume: “Hoje se tem uma grande ação entre amigos na política e nas instituições. Fica muito claro, por essas operações todas da Polícia Federal, que o nome disso é crime organizado”. Algo que a mídia, diz o repórter, não disseca, não aprofunda. O que, pode-se supor, contribui para a repetição dos casos.
Lucas Figueiredo é repórter especial do Estado de Minas, que pertence à mesma empresa dona do Correio Braziliense, onde suas reportagens também são publicadas. Trabalhou sete anos na Folha de S. Paulo, seis anos em Brasília e um em São Paulo. Nesse período escreveu o livro Morcegos Negros, que trata da investigação sobre o esquema PC-Collor e o crime organizado internacional. Depois saiu para fazer Ministério do Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula, 1927-2005, que lhe tomou “três gloriosos anos”. Voltou para Belo Horizonte há três anos. Para fazer O Operador, tirou seis meses de licença do jornal.
Eis a entrevista.
Os grãos de areia
Seu livro termina com uma frase de Marcos Valério Fernandes de Souza: “Eu sou um grão de areia. Um grão…” Parece que a história se repete. Agora existe um Cláudio Gontijo.
Lucas Figueiredo – Aparece eventualmente o nome de algum corruptor, o nome de algum corrompido, mas sempre fica em evidência o operador. O grão de areia. E com o passar do tempo, como não acontece nada com o corruptor, às vezes com o corrompido acontece algum embaraço, que é o que está acontecendo com Renan Calheiros – ele pode, eventualmente, perder a presidência do Senado mas vai continuar na vida pública, daqui a pouco tem um outro cargo novamente.
Estamos falando de um suposto corrompido.
L. F. – Exatamente. No final das contas não acontece absolutamente nada. Nem com os corruptores, nem com os corrompidos. E aí o sujeito que é aquele que pega dinheiro de um lado e entrega do outro, esse acaba, por uma falta também de competência da imprensa para dissecar o cadáver da corrupção… Ela precisa criar um vilão, cria os Paulo César da vida, os Marcos Valério da vida, grãos de areia dessas histórias todas que acabam se transformando nos vilões da história, mas que, na verdade, têm uma importância muito colateral em tudo que acontece, porque são operários de esquemas de corrupção, que têm peças de reposição aos milhares. E a grande questão é: quem faz a corrupção no Brasil? Quem são os corruptores? A mídia nunca vai muito atrás, nunca é muito rigorosa em relação a isso.
Marcos Valério de volta à ativa
Como anda Marcos Valério? O senhor tem idéia da vida dele?
L. F. – Marcos Valério está aqui em Belo Horizonte, já circula bastante pela cidade, já não tem tanta timidez quanto há uns meses, vai a restaurantes, é visto eventualmente andando pela rua. E a informação que eu tenho é que ele voltou a fazer negócios. Está se associando a empresários, é um sujeito que tem as contas bloqueadas, mas a informação que se tem é de que ele participa de alguns esquemas empresariais.
No final do livro o senhor fala da ‘trinca ilesa’: Eduardo Azeredo, Walfrido dos Mares Guia e João Heraldo Lima. Praticamente nem foram arranhados. Talvez uns arranhõezinhos na carreira de Eduardo Azeredo, perdeu o cargo de presidente do PSDB, cargo que não tinha grande importância, talvez. E os outros, não. João Heraldo Lima, não tenho a menor idéia do que faça na vida.
L. F. – É hoje diretor do Banco Rural.
Walfrido dos Mares Guia permanece incólume
E Walfrido dos Mares Guia, sabemos que ele é o grande operador político do presidente Lula neste momento. O senhor não acha isso algo extraordinário? Se a gênese da coisa funcionou como o senhor conta – e eu tenho a impressão de que o relato é correto, baseado em documentos, em material de imprensa acima de suspeição…
L. F. – E não fui contestado por absolutamente ninguém.
O livro foi lançado no ano passado?
L. F. – Em agosto do ano passado.
Então vai fazer dez meses. E nesse esquema uma figura realmente notável é Walfrido dos Mares Guia.
L. F. – Sim.
E o senhor fala também de algo chamado ‘modelo mineiro’. Esse ‘modelo mineiro’ parece que deu certo.
L. F. – Sem dúvida. Isso também é outra coisa com que a imprensa não mexeu, com alguma honrosas exceções, a Carta Capital fez alguma coisa, a Folha de S. Paulo começou a mexer, mas logo abandonou. Todo aquele esquema do Marcos Valério nasce aqui em Minas Gerais, sobretudo pela mão do [hoje] ministro Mares Guia. Exatamente aquela mesma coisa. Aqueles empréstimos falsos no Banco Rural, o dinheiro entra nas contas de Marcos Valério e acaba em contas de gente que estava disputando eleição, depois vem dinheiro do Estado para repor. As empresas do Marcos Valério conseguem contas, conseguem um dinheiro fácil das instituições do Estado em Minas Gerais e nisso tem um acerto de contas com o Banco Rural. Exatamente como vamos ver anos depois no governo do PT.
E é incrível como a imprensa não se interessou e não foi a fundo para apurar, porque na verdade estava tão fácil de ver – o mensalão, Marcos Valério, é parido no ninho tucano, e ele opera para o ninho tucano o tempo todo. Ao mesmo tempo que ele operava para o PT, ele continuava operando para o PSDB – em uma escala bem menor, porque, obviamente, quando o PT chega à presidência da República aquilo é uma mina de ouro. Antes, Marcos Valério operava para o PSDB em Minas Gerais; depois passa a operar para o PT em nível nacional. O prêmio dobra. Mas esse esquema é todo de Minas e do PSDB de Minas. E isso foi uma coisa que passou absolutamente batida. Mares Guia nunca foi incomodado por conta disso. Nunca nós vimos uma entrevista de Mares Guia ou uma manchete falando do nome de Mares Guia, Mares Guia é o pai da criança, e ele continua aí. E se você fizer uma pesquisa de opinião pública, talvez dê que 99,9% das pessoas não sabem que Mares Guia está envolvido com esse esquema do mensalão.
Vidas destruídas por malfeitos de poderosos
Uma coisa que a mídia também ignorou, e de que o senhor trata no final, trata de passagem, como, sem dúvida, era o caso, é a destruição de riqueza, de empregos, até de vidas. Há gente que ficou deprimida, que não conseguiu emprego… Isso também não foi objeto de alguma atenção correta da imprensa, me parece.
L. F. – Não, porque a imprensa sempre fica naquela coisa maniqueísta. Ela precisa de um herói e precisa de um vilão. Na medida que ela acha um sujeito que tem cara de vilão, se for careca, melhor ainda, se for feio, melhor ainda, se tiver alguns hábitos grotescos, melhor ainda; e se tiver alguma pessoa que encarne o papel do herói, que fale um pouco macio, que fale algumas palavras bonitas, a imprensa não costuma se preocupar com muita coisa mais. Tinha-se, em torno do escândalo do mensalão, vou chutar, no mínimo mil dramas pessoais de uma dimensão enorme, de pessoas que tiveram a vida arruinada. Trabalhadores, gente de bem que sempre teve conduta ilibada, e que deu o azar, por exemplo, de fazer uma carreira dentro de uma SMP&B [a principal empresa de Marcos Valério], às vezes como designer gráfico, às vezes como office boy, e essas pessoas ficaram marcadas um pouco por essa coisa da imprensa de criar selos. Se o sujeito trabalhou na SMP&B, ele é um corrupto, não importa se ele seja um designer gráfico ou o diretor da empresa: é tudo a mesma coisa.
Procurador geral da República atropelou Polícia Federal
Uma questão que me parece muito relevante em relação à cobertura da imprensa é o momento em que se descreve no livro algo que eu chamaria de ‘inépcia’ da Procuradoria Geral da República. Ou seja, não se questionou a qualidade da denúncia. A denúncia, em parte, funcionou como uma espécie de satisfação para a opinião pública e para a própria mídia, que celebrou aquilo e disse: “Pelo menos alguém fez alguma coisa!” – o procurador geral fez uma denúncia contra os quarenta, etc. Mas o que o senhor diz, com bastante clareza, é que aquilo talvez não tenha sido o caminho para punir ninguém.
L. F. – É engraçado. Coisas que são tão óbvias, mas tão óbvias que acabam sendo desconsideradas. Se a gente for lembrar do caso Collor, que parecia que o mundo ia acabar de tanta denúncia, e Aristides Junqueira, naquela época, procurador geral da República, encarnou o papel do herói. Ele faz aquela denúncia toda e sai como o grande herói da história, anos depois, quando aquilo vai a julgamento, o Supremo Tribunal Federal, que tem que atuar em cima dos autos, diz: “Mas aqui não tem nada! Não tem nada que possa levar à condenação de uma pessoa por uma acusação tão grave”. E o que a gente assistiu agora foi exatamente a mesma coisa. Em um momento em que a Polícia Federal ainda estava investigando, ainda estava levantando informações para se chegar às provas – porque uma coisa é a imprensa fazer uma boa manchete, outra coisa é se ter uma prova para levar a um tribunal, no momento em que se estava fazendo isso, por causa da eterna disputa de poder entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal o procurador geral da República sai na frente e apresenta uma denúncia que, a meu ver, é precipitada, porque ainda não se tinham as provas. Na Polícia Federal, os delegados que estavam envolvidos com a história dizem: “O que tinha até agora não vai dar em nada”.
Denúncia não juntou provas contra Dirceu
Mas a imprensa se contenta sempre com números. É sempre aquela coisa: quantos vão ser indiciados? E isso em um passo ainda anterior ao Ministério Público. O indiciamento, a rigor, não significa absolutamente nada. Significa que a pessoa está sendo oficialmente investigada, mas isso pode até não gerar uma denúncia em juízo; ela pode ser investigada e, na investigação, se concluir que ela não deve nada. Se uma CPI, por exemplo, tem quarenta indiciamentos ou cento e cinqüenta indiciamentos, parece que a CPI trabalhou bem. E, na verdade, é um número absolutamente ridículo. É um número que não significa nada. E no caso da denúncia – e não estamos mais falando de indiciamento, estamos falando de denúncia do procurador geral da República, aquela coisa dos quarenta, e todo mundo fez aquela comparação com os quarenta ladrões (“o grupo dos quarenta”, “a gangue dos quarenta”) e ficou com isso dos quarenta, sendo que o chefe, e isso palavra do próprio procurador geral, seria o José Dirceu – quando se vai ver na denúncia, isso não se sustenta. Quais são as provas? O que se disse ali? Havia uma organização composta por quarenta pessoas que desviava dinheiro público – e o cabeça dessa organização seria o então ministro José Dirceu. Agora, qual é a prova que se tem, ainda sem julgar o que José Dirceu fez ou não fez, mas qual a prova que se tem do envolvimento de José Dirceu, eu não digo nem no desvio de dinheiro público, no mensalão? Não existe nenhuma prova! Pode-se levantar uma questão política, porque ele era ministro-chefe da Casa Civil, era um sujeito próximo do Delúbio [Soares], mas quando se leva isso ao tribunal não se tem prova nenhuma.
E eu acho que essa denúncia que o procurador apresenta, sobretudo no caso de José Dirceu, é ótima para ele – porque eu não tenho a menor dúvida de que José Dirceu vai ser absolvido. Não tem nada contra ele! Na minha visão, eu acho que isso era um trabalho para pelo menos mais um ano de investigação. Para, talvez, se conseguir chegar a alguma prova contra José Dirceu e contra os outros participantes dessa organização, que certamente existiu. Muitas instituições entram no oba-oba, a imprensa entra dando uma grande manchete e fica por isso mesmo. Daqui a alguns anos, a decepção vai ser absolutamente geral, porque não existem provas.
O delegado Zampronha, parado no meio do caminho
No livro, o senhor fala do delegado [Luís Flávio] Zampronha, da Polícia Federal, e me deu a impressão de que, se ele tivesse continuado, provavelmente, teria chegado a uma coisa mais séria. A idéia que se tem lendo o livro é de que ele foi atropelado.
L. F. – Ele e a equipe que estava trabalhando com ele aí, era de tirar leite de pedra. Provar corrupção é muito complicado. Porque é preciso provar que o dinheiro saiu do cofre público, ainda mais hoje, quando há todos esses métodos de lavagem de dinheiro, para se configurar que o dinheiro que uma pessoa recebeu é o mesmo dinheiro que saiu do cofre público é um caminho muito complicado, muito difícil. Isso não só no Brasil, no mundo todo. E essa investigação estava andando lentamente, muito lentamente, não vou julgar se o delegado estava trabalhando bem ou se estava trabalhando mal, mas o caso avançava de forma lenta. E ele foi absolutamente atropelado pelo procurador geral da República. Em um determinado momento, o procurador geral quis apresentar a denúncia como se o Ministério Público tivesse feito todo o trabalho.
Quando, na verdade, é aquela briga: o Ministério Público não se contenta de não fazer investigação, quer fazer investigação. Só que o Ministério Público não tem instrumento ainda para fazer investigação. Um procurador não tem como investigar ele próprio. Ele depende da Polícia Federal. E o procurador geral quis pegar esse caso como um exemplo e apresentar como se tivesse sido feita uma investigação do Ministério Público. Apresentou a coisa pela metade e o Zampronha ainda estava no início do trabalho dele. Tinha várias perícias que estavam sendo feitas no INC (Instituto Nacional de Criminalística). Imagine-se o seguinte: pegar computador de dezenas de pessoas, analisar isso tudo, cruzar com movimento bancário, com coisa que chega de banco, com milhões de informações. Esse trabalho de perícia é muito complicado. Tinha várias perícias que ainda estavam em andamento e o procurador geral ofereceu a denúncia. Não tenho a menor dúvida que a Polícia Federal foi atropelada nesse caso. Nem digo que a Polícia Federal chegaria a algum lugar, mas ela ainda estava no início do trabalho.
Sem provas da existência do mensalão
No livro o senhor diz que não se provou efetivamente a prática do mensalão.
L. F. – Eu estou falando que o mensalão, aquilo que Roberto Jefferson dizia dos 30 mil mensais, acho que ele deu uma chutada no valor. Mas, enfim, que existiam pagamentos regulares para parlamentares. Aquilo não foi provado! Porque se chegou a um determinado momento da CPI que estava sobrando para todo mundo e fizeram um acordão para acabar com o negócio. Sobrou para Valdemar Costa Netto, sobrou para os que pegavam o dinheiro, mas para quem que aquilo ia? Quais eram os parlamentares que recebiam o dinheiro? Isso não foi provado. Parou em uma fase do negócio. E aí eu acho que foi um grande acordão do PSDB e do PT, porque ia sobrar para os dois. Se se abrisse como esse dinheiro foi pulverizado nas campanhas do PT e se o PT abrisse como tinha funcionado a ‘versão 1.0’ do mensalão, caía todo mundo. E aí parou naquele nível de “o Valdemar Costa Neto recebeu tanto, o Roberto Jefferson recebeu tanto, o [Emerson] Palmieri [então tesoureiro do PTB] recebeu tanto”, e pronto. Acabou. “O Delúbio tinha tanto na mão, o Marcos Valério tanto na mão”, mas quem eram os parlamentares que recebiam? E quando se faz o cruzamento do recebimento do dinheiro pelos capas-pretas do PL, do PTB, e tudo mais, com as votações, vê-se que esses pagamentos viravam as votações.
Ninguém sabe quais deputados receberam para virar votações
Para se virar um votação na Câmara é preciso ter garantia de uns cem votos a mais. Quem são essas pessoas? Que não sejam cem, sejam cinqüenta; que não sejam cinqüenta, que sejam vinte. Quais foram os vinte parlamentares que receberam mensalão? Isso a CPI não quis aprofundar e a imprensa também não quis cobrar muito. Ela ficou satisfeita com o que tinha sido feito. Agora, eu não tenho dúvida de que o mensalão existiu. Estamos falando, mais uma vez, de quando se leva um caso para um tribunal. Com os elementos que foram levantados, não se tem como condenar absolutamente ninguém.
E é uma coisa mais estranha ainda, do ponto de vista jornalístico, que sendo o número beneficiários cem, cinqüenta ou vinte, é gente demais para um segredo ficar intacto. Se se mexer nisso aí, acaba aparecendo mais coisa. O brasileiro tem a mania de fazer as coisas de uma maneira bem esquisita, traficante cheira cocaína, prostituta tem orgasmo, corruptor gosta de bater no peito e dizer quanto deu. Se se mexer, acaba-se chegando a algum fio de meada, mas ninguém mexe. Pronto. Talvez um pouco porque a sucessão de coisas é tão avassaladora que as equipes não conseguem dar conta. Nesse caso, o jornal ou o veículo teria que tirar um sujeito e colocar no assunto, dizer assim: “Você vai ficar nisso aí que nem um cachorro com um osso”.
L. F. – Exatamente.
Até furar.
L. F. – E talvez por um período que supere um, dois anos. Uma coisa que se escuta demais dos editores, em redação…. Acontece um escândalo. No início, você tem manchete para chuchu – porque está tudo muito fácil. Pega-se um documento aqui, um grampo ali, uma transação de dinheiro acolá. Quinze dias de manchetes. Na terceira semana, já não é manchete, já está no meio do jornal, um alto de página. No mês seguinte já foi para o pé da página. Quando rola mais uma semana, chega-se com uma pauta, já se ouve: “Olha, vamos mudar de história porque o leitor se cansou disso”. Como é que o leitor se cansou disso?
E como se tem uma fartura de escândalos, a imprensa fica cobrindo a nata do negócio e não se aprofunda. Ela fica satisfeita até porque dá menos trabalho, ela faz um barulho danado com esses vilões e com esses heróis que ela vai elegendo pelo caminho, e, dali a seis meses, os mesmos corruptores de sempre vão estar envolvidos em uma outra história e ela vai fazer a coisa exatamente do mesmo jeito, sem um olhar mais crítico do processo de corrupção e do que estava envolvido naquilo. Eu acho que os grandes jornais, as grandes redes de televisão, deveriam fazer isso que você falou: tinha que ter alguém cobrindo o mensalão até hoje. Imagina quanta pista, quanta linha solta não ficou para trás, que um repórter um pouco mais esperto não poderia ir e descobrir alguma coisa.
Aécio Neves e Clésio Andrade, ignorados
Aécio Neves e Clésio Andrade. O senhor não acha extraordinário que essas pessoas passem completamente incólumes por tudo isso?
L. F. – Pois é. Quando veio à tona, a imprensa deu mal e porcamente o envolvimento do PSDB com Marcos Valério, teve-se ali a informação pública de que vários secretários de estado, pessoas próximas a Aécio Neves, tinham recebido dinheiro de Marcos Valério, e não se teve nenhuma grande preocupação de ouvir Aécio, nenhuma grande pressão, nenhuma manchete. Eu não me lembro nem de uma chamada de primeira página, ou uma chamada de televisão, sobre isso. Existia o seguinte: não vamos mexer muito com o PSDB.
Clésio era o sócio! O vice-governador de Minas Gerais, vice de Aécio Neves, era o sócio [de Marcos Valério] quando tudo aconteceu pela primeira vez. É óbvio que alguma coisa ele sabe. E ele, por exemplo, não foi chamado a depor na CPI. Azeredo, a mesma coisa. Quando veio à tona do nome de Azeredo, Azeredo escolheu um dia bem tumultuado no Congresso, foi na CPI, leu um pronunciamento, foi embora e nunca mais foi chamado. Todo mundo se deu por satisfeito com um pronunciamento escrito por ele ou por algum assessor dele, que ele foi lá e espontaneamente leu, e ninguém teve mais curiosidade de questioná-lo com relação a isso. Não se imaginava que o PSDB fosse poupado pela mídia.
Ação entre amigos, crime organizado na política
Essa cena de Azeredo, a cena de Roberto Brant, que recebe a solidariedade no plenário, e ontem (29/5) Renan Calheiros, que, como presidente da sessão, suspende a sessão para receber os cumprimentos dos seus pares, é a mesma coisa.
L. F. – Hoje se tem uma grande ação entre amigos na política e nas instituições. Fica muito mais claro, por essas operações todas da Polícia Federal, que o nome disso é crime organizado. Não tem outra palavra. Quando há grandes organizações que incluem o grande poder capitalista (e aí estamos falando do poder capitalista mesmo, é gente que não faz negócio com menos de duas casas de milhão). São empresários desse porte, são grupos empresariais, muitas vezes com participação de capital estrangeiro, que estão operando, alguns, há décadas no Brasil, corrompendo grupos políticos, hoje não se tem mais uma separação de quem está de um lado e de quem está em outro. O PT hoje, a base do PT é de partidos absolutamente envolvidos com esses casos de corrupção, e isso acontecer já é uma coisa grave. Mais grave ainda é a mídia não dissecar isso. A mídia não ir a fundo para entender esse fenômeno de como o crime organizado tomou as instituições – Legislativo, Executivo e Judiciário. Todo dia se tem uma história de um juiz que recebeu dinheiro de um empresário, que tinha uma liminar para julgar, que corrompeu também um parlamentar, que deu propina para um ministro. Está tudo ligado.
Daniel Dantas deu um baile na CPI – com alguma ajuda
Já que falamos disso: Daniel Dantas e Opportunity. Está lá no livro: passaram batidos pelas CPIs.
L. F. – A figura de Daniel Dantas eu acho a mais curiosa nessa história toda, absolutamente cercada de mistérios, mesmo porque a gente não sabe qual é o envolvimento dele com a coisa. Mas as empresas de Daniel Dantas figuram como os maiores repassadores de dinheiro privado para as empresas de Marcos Valério. Isso não foi tocado pela CPI. A CPI passou absolutamente ao largo dessa história. Daniel Dantas foi chamado, deu um baile na CPI com a ajuda de alguns parlamentares que ele tem ali sempre à disposição para dar alguma colaboração.
E a própria figura da secretária [de Marcos Valério] Fernanda Karina Somaggio, havia uma suspeita muito grande de que talvez ela tivesse sido uma pessoa plantada, ou colhida, dentro da SMP&B para prejudicar os tucanos, ou para servir como um ponto de chantagem, de manobra. Também ninguém quis ir muito a fundo nessa história. Agora, para mim, fica claro que a participação de Daniel Dantas em toda essa confusão é muito maior do que se viu até agora. Aquele caso da Operação Portugal e da viagem que Palmieri faz com Marcos Valério a Lisboa, havia ali interesses na área de telefonia muito grandes. E quando se fala em interesses na área de telefonia, se está falando em Daniel Dantas. Tinha um jogo muito pesado envolvendo Daniel Dantas e ninguém quis ir muito a fundo.
Abin, serviço secreto que ninguém controla
No início do livro o senhor fala: “A Abin estava investigando os Correios”. Como é que está a Abin [Agência Brasileira de Inteligência] hoje? Eu ainda não li seu outro livro – Ministério do Silêncio –, provavelmente o senhor está informado sobre isso. Agora, nesta mais recente crise, começaram a surgir notícias de que Tarso Genro está manipulando a Polícia Federal. Algumas pessoas disseram que há um processo de desestabilização da democracia – e, nesse contexto, sempre se pensa no velho SNI, essa coisa toda.
L. F. – A Abin é hoje uma instituição absolutamente fora de controle, porque, em termos institucionais e em termos práticos, é um órgão civil que está vinculado a um órgão de cultura militar, que é o GSI, o Gabinete de Segurança Institucional. Na prática, a Abin é comandada por um general, que é o general [Jorge Armando] Félix, o ministro-chefe do GSI. Só nisso já tem um contradição enorme. A Abin hoje não tem um controle externo efetivo, ela trabalha, como todo serviço secreto, com operações clandestinas, usando todos os métodos sujos que todo serviço secreto do mundo usa – por exemplo, grampo clandestino, história de cobertura, chantagem, gente se fazendo passar por outra pessoa para recolher segredo, “andorinhas” (que são as agentes mulheres que usam o corpo para conseguir arrancar segredos dos seus alvos). Tem uma série de métodos que são universais que a Abin também usa. Só que ela usa sem um controle externo, ela usa sem se ter clareza de quais são as suas finalidades. A Abin é um dos poucos serviços secretos do mundo que atua tanto no campo externo – ou seja, há atuação dela fazendo espionagem em outros países e tentando evitar a espionagem estrangeira no Brasil –, quanto no campo interno, ou seja, investigando cidadãos brasileiros.
O serviço secreto é um órgão que tem tanto poder que os países democráticos mais modernos dividem o seu serviço secreto em dois: aquele que faz o campo externo e aquele que faz o campo interno. Nos Estados Unidos, por exemplo, a CIA faz o campo externo – estou citando a CIA, o mais conhecido, mas tem outros. A CIA tem autorização para ir ao Iraque ou ao Afeganistão e barbarizar, uma prerrogativa dada pelo Congresso, mas dentro do território americano ela não pode checar o número da identidade de um cidadão americano. Quem faz isso é o FBI, que é o equivalente deles à Polícia Federal. Por que acontece isso? Porque não se concentra poder demais na mão de um órgão só.
Todos os escândalos têm dedo de espiões
Aqui no Brasil, não. A Abin faz o campo externo e o campo interno. Além de fazer os dois, ela não tem um controle externo, não é investigada pelo Congresso, mais uma vez o exemplo dos Estados Unidos. Um agente secreto da CIA pode, por exemplo, ter autorização para matar, mas isso vai passar pelo Congresso. E isso depois vai ser investigado pelo Congresso. E hoje se tem o órgão, a Abin, em guerra interna, dividida em grupos que se digladiam pelo poder, tem os militares, tem os concursados, tem o chamado R2 – os civis que foram recrutados na década de 70 –, tem aquele grupo meio secreto que tem como símbolo o terceiro olho na testa… Quatro ou cinco grupos se digladiando pelo poder, e a arma que eles usam é vazar informação do serviço secreto para minar os outros grupos. Se a gente pegar o governo Fernando Henrique, alguns dos grandes escândalos do Fernando Henrique surgiram dentro do serviço secreto. Grampo do BNDES, Dossiê Cayman, isso tudo passou pelo serviço secreto.
E se tem o caso Waldomiro Diniz, primeiro grande escândalo do governo Lula: teve uma participação imensa do serviço secreto. Você se lembra daquela gravação do Waldomiro Diniz no aeroporto de Brasília entregando uma mala para um outro sujeito? O Waldomiro é o tempo todo monitorado pelas câmaras de circuito interno do aeroporto de Brasília. Tudo bem você dizer que Carlinhos Cachoeira [bicheiro] colocou uma câmara dentro do escritório dele. Você pode dizer que foi Carlinhos Cachoeira, mas dizer que Carlinhos Cachoeira controlava as câmaras do circuito interno do aeroporto de Brasília, isso você não consegue fazer. Isso é uma coisa mais complicada.
E no caso dos Correios fica muito claro que a Abin estava investigando os Correios, ninguém sabe para quê; ela estava exatamente dentro daquela confusão quando estoura o escândalo. É muito difícil e cheio de arapongas e ex-arapongas em volta daquela turma do Maurício Marinho, do ‘Petequeiro’, como diz Roberto Jefferson. Um simples ‘petequeiro’ e a Abin estava investigando ele. É muita coincidência para a gente não achar que o serviço secreto também estava, mais uma vez, envolvido nessa história.
Quem entregou a fita dos Correios para a Veja
No livro o senhor dá uma resposta a uma pergunta que foi feita e nunca foi respondida pela própria Veja. Diz que “o araponga Jairo entregou a fita para a Veja” ou para o repórter Policarpo Júnior. Isso é uma revelação do livro ou isso saiu em algum outro lugar?
L. F. – Não sei se isso saiu em algum outro lugar, mas eu não tenho a menor dúvida, pela própria apuração que fiz, que foi Jairo quem entregou a fita para Policarpo. Eu, se fosse o Policarpo, pegaria a fita, agradeceria e iria embora, porque aquilo era um baita de um material jornalístico. Era um funcionário público recebendo uma propina. Agora, que existiam interesses muito grandes para que essa fita parasse na imprensa e deflagrasse toda aquela confusão, isso aí, para mim, é claro.
Banco Rural, sempre ligado a lavagem de dinheiro
Há uma passagem também em que o senhor fala de Banco Rural e CPI do Narcotráfico. Qual é a conexão?
L. F. – Quando se examinam a CPI do Banestado, a CPI do Narcotráfico, a CPI do Futebol, a CPI do Mensalão e mais umas três CPIs que eu não me lembro de cabeça, em todas essas CPIs, quando se identificava uma movimentação de dinheiro que vamos chamar de irregular aparecia o nome do Banco Rural. Para mim fica muito claro o seguinte: o Banco Rural serve de suporte para essas transações irregulares. Nisso também a imprensa nunca parou muito para pensar.
Por que é que são os mesmos bancos – e aí, de novo, voltamos a falar do grão de areia e de um grande oceano –, por que é que os grandes bancos, por que é que um banco como o Banco Rural sempre está envolvido em grandes escândalos? No caso Collor, por exemplo, você tem Banco Rural, Trade Link Bank envolvidos até o pescoço com o esquema PC Farias, e esses bancos nunca sofrem uma investigação um pouco mais profunda.
Esses bancos, usando a definição corrente de lavagem de dinheiro, fazem lavagem de dinheiro.
L. F. – Várias vezes a Polícia Federal já identificou que o Banco Rural é dono do Trade Link Bank, que é uma offshore que faz muita lavagem de dinheiro nos paraísos fiscais do Caribe. Segundo vários delegados da Polícia Federal, o Trade Link Bank é um braço financeiro do Banco Rural. Quando a gente vai ver o escândalo do mensalão, o escândalo Collor e outros escândalos, está lá sempre o Trade Link Bank metido no meio, lavando dinheiro dessa turma toda, muitas vezes em operações casadas com o próprio Banco Rural.
Quando se pegam atas do Trade Link Bank, se vê que as reuniões do Trade Link Bank acontecem em prédio do Banco Rural. A sede do Trade Link Bank no exterior fica ao lado da sede do Banco Rural na mesma cidade. Isso tudo é coincidência demais. E ainda ninguém quis muito ir atrás dessa história. Preferem mais uma vez ir atrás de Marcos Valério. Não que eu ache que Marcos Valério não deva ser investigado, eu acho que deve ser investigado, sim. Mas se diz “o Marcos Valério fez isso, comprou isso, fez aquilo outro”, e o Banco Rural está aí, com as suas portas abertas, fazendo negócio.
BMG, favorecido no crédito consignado
BMG também, não é?
L. F. – O BMG, a mesma coisa. Fica muito configurado no caso do BMG, e aí eu acho que tem chances de prosperar na Justiça, que o BMG, muito provavelmente, recebeu um favor, a autorização para trabalhar com os empréstimos consignados, para que, em troca disso, colaborasse naquele esquema de financiamento de campanha.
E o BMG tem um pouco mais de história, que é o momento em que a família Pentagna Guimarães sai da sombra, no governo de Newton Cardoso (1987-90) e se instala no Palácio da Liberdade. Tem-se um governador que não é nem da mineração, nem do café, para usar essa alternância clássica de Minas. Newton Cardoso era filho de uma pessoa dona de cartório em Brumado, na Bahia, onde a Magnesita, empresa da família Pentagna Guimarães, tem jazidas. A Magnesita tem uma fábrica em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Newton Cardoso começou a ascender como prefeito de Contagem. E ninguém apura essas coisas! Eu fico besta!
L. F. – Isso é engraçado, porque você tem aí grande elefantes, em todas essas histórias de que estamos falando, uns animais parrudos, umas coisas grotescas que andam por aí, e a imprensa fica procurando formiguinha, às vezes micróbios, da história.
Ler a documentação com paciência
No livro O Operador o senhor trabalhou principalmente com coisas que já foram publicadas, certo?
L. F. – Com muita coisa que já tinha sido publicada e com muita coisa que não tinha sido publicada também. Por exemplo, eu peguei todos os depoimentos da CPI na íntegra e li com uma lupa. E isso é uma coisa que a imprensa… Eu já cobri várias CPIs em Brasília, você vai cobrir aqueles depoimentos de dez, onze horas, fica ali com a antena ligada para o lide e para o sub-lide, precisa de um lide e de um sub-lide. Só que quando você vai pegar aquilo depois e processar, cada depoimento desses tinha, aproximadamente, trezentas páginas. Então havia uma quantidade de detalhes que passavam batidos, e que depois, com uma pequena entrevista com alguém que tinha envolvimento com a história, se matava a charada. Eu estava trabalhando com dados, vamos dizer, abertos, a que a imprensa toda tinha tido acesso, mas garimpando, o que era uma coisa que a imprensa não tinha feito.
A mitologia do jornalismo investigativo
Uma coisa muito interessante e educativa do ponto de vista de mídia é que o senhor não se disfarçou de mendigo, não colocou nenhuma peruca, não se fez passar por um garçom de botequim, simplesmente pegou o negócio e foi ler. E o senhor afirma! O livro todo é em tom afirmativo. “O Marcos Valério fez isso. A renda dele passou de tanto para tanto”. Está tudo nos autos, está tudo em documentos oficiais, declarações de imposto de renda. Mas as pessoas não dão valor.
L. F. – É verdade.
E a maior parte da historiografia que foi feita até hoje, na história da humanidade, é baseada em documentos que foram deixados! Ninguém foi lá ouvir Júlio César. Não tem isso! Tem o que se consegue dos relatos, dos cronistas, enfim, outras fontes.
L. F. – É bem engraçado. Essa mania que se tem agora de falar em jornalismo investigativo, todo mundo enche a boca para falar do jornalismo investigativo, parece que você é quase mágico de tão investigativo, tem poderes quase sobrenaturais de investigar. E, na verdade, o que funciona ali é a velha e boa reportagem. Para fazer O Operador, eu tinha todos os depoimentos das CPIs, mais todos os depoimentos da polícia, mais um catatau de declaração de imposto de renda, declaração, por exemplo, do Duda Mendonça na Polícia Civil da Bahia. Você vai catando um monte de coisas, junta uns três, quatro metros de documento e vai ler tudo. Só que isso dá trabalho para burro. Eu passei dois meses, doze horas por dia, só lendo documentos. Mas, depois que você faz isso, você tem uma clareza tão grande de como é o problema que fica muito mais fácil entrevistar alguém e buscar um dado que vai lincar duas informações. Coisa que a imprensa não faz. Ela dá uma informação aqui, no outro dia dá uma informação ali, mas ela não faz o link. Porque isso é uma coisa que dá trabalho. Ela tem o material para fazer isso, mas ela não se dá ao trabalho de fazer.
(Transcrição de Tatiane Klein.)