Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Igreja e fundamentalismo midiático

Quando ocorreram os ataques terroristas às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, nos EUA, o mundo descobriu que por trás do ato político extremado contra a maior nação capitalista do planeta escondia-se na nuvem de escombros um núcleo paramilitar organizado, de inspirações muçulmanas, denominado Al Qaida. Foi o suficiente para que a mídia norte-americana, apoiada nos relatos de uma dúzia de especialistas, pesquisadores, acadêmicos e afins, se debruçasse sobre as suspeitas de uma religião cujos ensinamentos de fé poderiam doutrinar seguidores de uma ideologia contra tudo que pudesse se referir ao estilo de vida ocidental. Entre uma oração e outra endereçada a Alá, possivelmente a intelligentsia ianque cogitava a hipótese de uma nova geração de assassinos em massa estar em plena nascente.

Tentou-se então, traduzir os hábitos exóticos dos seguidores do Corão e seus peculiares códigos de comportamento objetivando, quem sabe, a esclarecer supostas atitudes suspeitas em suas entrelinhas. Após utilizar uma lupa de alta resolução em suas conclusões, a mídia atestou, enfim, que as mesquitas não eram fábricas de terroristas e que, excetuando-se o uso de uma burka aqui, um shador acolá e o ‘estranho’ dialeto, tudo estava como antes no quartel de Abrantes.

Ganância desenfreada

Quando ocorreram as denúncias envolvendo esquemas de charlatanismo, curandeirismo, extorsão e lavagem de dinheiro encabeçadas pela Igreja Universal do Reino de Deus, há alguns anos, o país descobriu que a sujeira debaixo do tapete foi descortinada mediante uma campanha de difamação envolvendo duas das mais poderosas emissoras de TV tupiniquins (Globo e Rede Record, essa última de propriedade da seita evangélica). A perda constante de audiência e de receitas publicitárias da Vênus Platinada para a concorrente motivou uma mobilização interna sem precedentes. Uma estratégia semelhante às mais eficientes táticas de guerrilha estava em curso: o uso do aparelho jornalístico da Globo que patrocinou investigações que possibilitaram desenhar a intrincada estrutura organizacional da igreja, dotada de um sistema de metas e resultados semelhantes às de qualquer empresa que tenciona recrutar novos talentos executivos.

Imagens em vídeo flagraram ações constrangedoras do seu líder, o bispo Edir Macedo, ensinando obreiros a mercantilizar a fé através de uma série de instrumentos de persuasão visando a doações cada vez mais vultosas. Tudo era estudado em minúcia para que os fiéis se conscientizassem, geral e irrestritamente, de que era chegada a hora de ‘comprar o seu lugar no céu’. O apogeu da guerra midiática ficou eternizado através de um close em que Macedo, debruçado sobre um montante de dinheiro após o término de um culto, sorri maliciosamente pela féria alcançada em pleno Jornal Nacional. Apesar de toda a turbulência generalizada, os evangélicos neopentecostais mantiveram sua crença inabalada em seu líder espiritual, mesmo com as evidências apontando a necessidade de uma intervenção imediata da justiça. A exposição pública desse fato produziu antipatias de toda espécie. Entretanto, são poucos os que hoje assumem a tese de que seus fiéis sejam também entusiastas de tamanha ganância desenfreada.

Prevenção para detectar predadores sexuais

Agora, o alvo da vez é a Igreja católica. As denúncias de redes articuladas de pedofilia envolvendo sacerdotes foram um prato cheio para a mídia. Os meios de comunicação cumpriram o seu papel em amplificar as notícias. O procedimento foi o mesmo dos dois exemplos citados acima: visar como alvo os pilares da instituição religiosa e provocar a já tão conhecida reação em cadeia polemizante. Especialistas, teólogos e afins foram pautados para lançar luzes, dessa vez, sobre a conduta sexual de padres que aliciavam coroinhas e seminaristas. O curioso nessa tragédia é que o celibato foi exposto na medina como uma aberração que não mais encontra eco na modernidade do século 21 e seria uma determinação antinatural a qual poucos sacerdotes estão psicologicamente preparados para exercer. A grita geral tendenciou para a revisão desse processo com a justificativa de que os abusos diminuiriam ou até cessariam.

Em primeiro lugar, há um problema de transtornos de sexualidade muito específicos – eu diria isolados – que norteia a grande maioria dos casos registrados. São patologias que, talvez, estejam enraizadas num período muito anterior a vocação sacerdotal. É verdade que esse psiquismo distorcido encontrou uma brecha para ser exercido em silêncio nas casas paroquiais, aproveitando-se de uma relação de confiança entre autoridade espiritual e seus pupilos. Mas, como fato inusitado, ganhou proporções alarmistas que não correspondem à realidade; os episódios começaram a ganhar contornos de uma epidemia iminente que não distingue inocentes de pecadores, além de estabelecer um postulado não oficial de vigilância sobre todos àqueles que se dedicam à evangelização cristã.

Em segundo lugar, a Igreja católica estabeleceu a figura do diácono, um sacerdote que recebe um ordenamento especial com autorização para celebrar grande parte de uma missa (excetuando-se a eucaristia, tarefa exclusiva dos padres) e que pode, inclusive, constituir família. Ou seja, viver em celibato ou ser um sacerdote religioso de outra cepa são escolhas distintas, não são decisões impostas para por em xeque os limites da sexualidade humana. Porém, assim como os psicólogos, policiais, artistas, jornalistas, advogados, engenheiros etc., os padres também necessitam estar sujeitos a uma avaliação periódica de sua psique por estarem expostos, às vezes, a tarefas que lhes exaurem as forças emotivas. Mas nem por isso tais avaliações periódicas são recomendadas com o único intuito de serem trabalhos preventivos para se detectar predadores sexuais.

Vícios de intolerância

Não tenho a cátedra e o espaço necessários para explicar contextualizações transcendentais que incentivem o ofício da fé. Porém, uma afirmação se faz urgente nesse momento: não podemos permitir que algumas maçãs podres contaminem todo um cesto de frutas. E o que dizer dos pedófilos não celibatários? Ter contato inesgotável com o mundo afora e acesso irrestrito às fontes de suas perturbações, mediadas principalmente pela internet, não parece fazê-los mais saudáveis perante o convívio social como bem exemplificam as outras dezenas de denúncias que surgiram. Permito abrir um parêntese dentro desse raciocínio e lembrar que a legislação trabalhista acerca do assédio sexual não foi formatada visando às agregações paroquiais.

Como consequência desse monitoramento excessivo, vem à tona uma versão reformulada da caça às bruxas. Repita-se: não se está condenando a apuração jornalística das denúncias. O rigor da responsabilidade civil precisa pesar sobre quem praticou essas insanidades. Entretanto, há danos quase irreversíveis que precisam ser avaliados com isenção. Talvez o maior deles tenha sido o estímulo de pré-julgamento depositado sobre grande parte da opinião pública disposta a comprar certas ideias baseadas no ódio puro e simples. Como argumentar, agora, com o inconsciente coletivo não católico que os celebrantes de uma liturgia com mais de 2 mil anos de tradição não são fornicadores sedentos em uma casa de swing clerical? Como argumentar que um abraço de um padre em um jovem crismando ou seminarista, em conclusão de seus estudos bíblicos, não configura subliminarmente um flerte erotizante?

É sabido que jornalismo e religião nunca se bicaram e não será hoje que o cessar-fogo vai se concretizar. Há sempre uma onda ciclotímica de patrulhamento, ainda que discreta, que recai sobre os praticantes de uma religião que declaradamente não se compactuam com os erros cometidos por seus líderes espirituais. O problema é que a narrativa jornalística muitas vezes não se cerca de sutilezas e os estilhaços de seu bombardeio moral não medem o tamanho das feridas que recaem sobre os que nada viram ou fizeram de comprometedor.

Judeus, muçulmanos, evangélicos, umbandistas etc. já tiveram que vir a público em determinadas situações para se eximir de culpas que não carregavam, algumas delas alimentadas por historiografias equivocadas e, mais uma vez, amplificadas pela mídia. Agora são os católicos que precisam carregar essa cruz. A outra face a ser dada por eles não é pela vergonha em se admitir que uma crise interna precisa urgentemente ser contornada, mas sim, pelos vícios de intolerância de certos meios de comunicação que não se incomodam em produzir a sua própria fogueira inquisitória onde pecadores e inocentes são carbonizados em praça pública.

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Jornalista