Era absolutamente previsível o carnaval das redes de TV com o primeiro vôo espacial de um brasileiro – uma patriotada que faz lembrar as que a máquina de propaganda da ditadura militar produzia para associar feitos reais ou nem tanto da brava gente brasileira à Redentora, o regime nascido do golpe de 1964.
Perto da barulheira e do tempo dedicado à viagem do tenente-coronel Marcos Cesar Pontes, numa nave espacial russa e em companhia de dois outros tripulantes, perderam-se no éter as palavras do presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Ennio Candotti, sobre o momentoso evento.
Numa entrada de menos de 1 minuto, ele acabou com a festa em poucas palavras. Chamou de “carona” o que a mídia eletrônica tratava como proeza. Pior, acrescentou, “carona remunerada”.
A cobertura televisiva do “acontecimento histórico”, como as emissoras não se cansavam de dizer, deixou barato, efetivamente, que o assento ocupado pelo simpático e expansivo oficial da FAB na Soyuz TMA-8, custou 10 milhões de dólares ao país cujos centros de pesquisa científica vivem da mão para a boca.
Quem pôs as coisas nos seus devidos termos foi o editorial da Folha de hoje “Um brasileiro em órbita”. Irretocável, o texto mostra que a carona, como diz Candotti, “ajuda a encobrir o fiasco que foi e ainda é a participação do Brasil na Estação Espacial Internacional” – uma novela, explica o jornal, que começou no governo Fernando Henrique.
O editorial:
“A viagem do tenente-coronel Marcos Cesar Pontes ao espaço serve a dois propósitos. Permite que o governo diga que colocou um brasileiro no espaço -o que não é bom nem mau- e ajuda a encobrir o fiasco que foi e ainda é a participação do Brasil na Estação Espacial Internacional (ISS) – o que é péssimo.
A novela da ISS começou no governo Fernando Henrique Cardoso. Pelo acordo inicial, firmado com a Nasa, a agência espacial norte-americana, o Brasil fabricaria peças para a estação, orçadas em US$ 120 milhões, e figuraria como uma das 16 nações construtoras da ISS, além de conquistar o direito de fazer duas viagens espaciais e alguns experimentos científicos. Era um projeto megalomaníaco desde a origem.
O Brasil, porém, nunca entregou as peças prometidas. Vinha sendo pressionado pela Nasa. Mas, depois da explosão do ônibus espacial Columbia, em 2003, o cronograma se desintegrou. O atraso deixou de ser importante, e o vôo do astronauta brasileiro ficou para as calendas.
Para não perder anos de treinamento de Pontes e ter a chance de dizer ‘pela primeira vez na história deste país mandamos um homem ao espaço’, o governo Lula teve que se entender com os russos. O Brasil está pagando cerca de US$ 10 milhões, quando o valor ‘de mercado’ de uma viagem a bordo da Soyuz é de US$ 20 milhões. Moscou concedeu esse desconto porque pretende transformar o Brasil em cliente de sua tecnologia espacial.
A aventura brasileira pode produzir vantagens intangíveis, como despertar o interesse de jovens pela ciência e até mesmo facilitar a ‘venda’ da base espacial de Alcântara (MA) a países interessados em lançar foguetes a baixo custo. Dependendo do valor que se atribua a esses eventuais benefícios, os US$ 10 milhões podem ser considerados um preço razoável. Só o que não dá é para tentar esconder atrás do factóide do astronauta brasileiro o fracasso que foi a participação do país na ISS.”
P.S.
Para quem confunde comentar a atualidade com destilar rancor – como, lamento dizer, é o caso de alguns dos leitores deste Verbo Solto – tudo é pretexto para baixaria, até o vôo do brasileiro.
A produção de fel na mídia, aliás, não é monopólio: entregam-se a degradar o debate público opinionistas de todas as cores. Muitas vezes com um mau-gosto de dar dó.
Vejam como termina, no Estado de hoje, o artigo semanal assinado por João Mellão Neto:
“Eu chego a desconfiar de que a missão do nosso astronauta não tenha objetivos apenas científicos. Trata-se, isso sim, de uma secreta expedição precursora. Urge preparar o terreno. Porque logo mais, em outubro, é o próprio Lula que vai para o espaço.”
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