Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

PT-25 e o velho jornalismo burocrático

Antes tarde do que nunca, O Globo de domingo passado salvou a imprensa pátria da apagada cobertura dos 25 anos do PT, dia 10. Tão apagada como a comemoração do jubileu do partido que fez o presidente da República, três governadores, 412 prefeitos e 91 deputados federais (a maior bancada da Câmara). Mas está obrigado a fazer a quadratura do círculo – provar que continua a ser de esquerda mesmo tendo ido para a direita, que o Waldogate não enlameou a sua outrora luzidia estrela vermelha e que o aparecimento de um candidato avulso entre os seus à presidência da Câmara não indica que, também em matéria de ambições pessoais, é uma legenda como outra qualquer.

No caso do PT, a foto do momento culminante de todo aniversário – o apagar da velinha do bolo – mostra uma alegria pro-forma, quando não constrangida, encenada para as câmaras, mais eloqüente do que os ataques ao partido na imprensa e no Congresso (dos quais está excluído exatamente o que mais machuca os petistas históricos, a política econômica).

A questão jornalística inescapável é que os mesmos motivos que estragaram a festa do PT deveriam ter animado a mídia a ir muito além do que foi no tratamento da insólita situação. Os jornais ficaram na superfície do óbvio. ‘PT comemora aniversário com o desafio de reencontrar o equilíbrio’, mancheteou por exemplo O Estado de S.Paulo, na data de nascimento da agremiação.

No mais, com uma exceção de que se falará adiante, foi a tomada do poder pelo jornalismo burocrático:

** entrevistas às catadupas com o ex-deputado José Genoíno, que além de presidente da sigla é o político mais receptivo, simpático e falante que um repórter poderia querer;

** linhas de tempo com os momentos históricos do partido;

** tabelas com a distribuição estadual dos seus filiados – 810.118 (segundo o Valor), 821.437 (Folha de S.Paulo), 840.108 (Estado) 847 mil (Globo) ou ‘cerca de 800 mil’ (Genoíno, em artigo no Estado);

** declarações previsíveis de cientistas políticos a perguntas convencionais;

** citação de matérias estrangeiras – em suma, o feijão-com-arroz de sempre.

O Globo se diferenciou da mesmice geral porque se deu o trabalho de ir até onde a noticia está – no ‘abismo entre o sonho e o exercício do poder’, como o jornal intitulou apropriadamente a sua enquete com 38 dos fundadores do PT que aceitaram responder ao questionário do jornal, oferecido a mais de 80 dos sobreviventes da turma original.

Estava, literalmente, nas caras – aquelas que aparecem na foto que toda a imprensa tem, da reunião inaugural do partido, no Colégio Sion, em São Paulo, em fevereiro de 1980. Já que desapareceu a relação original com os mais de cem signatários da ata de fundação, a foto deu a primeira pista para se chegar a quem interessa. A Fundação Perseu Abramo, que tem a memória do partido (e o nome de um dos melhores jornalistas brasileiros de seu tempo), ampliou a relação.

‘Prerrogativa do editor’

A ‘frustração’, como diz O Globo, da maioria dos entrevistados – entre eles o próprio Lula – pode ser medida desde logo pelo fato de que apenas 9 dos 38 se disseram plenamente satisfeitos com os dois anos do governo petista. Mesmo descontando que, para a maioria, responder ‘plenamente satisfeito’ seria politicamente incorreto, indício de soberba.

A cereja no bolo da cobertura foram duas historietas, que valem por um tratado. A primeira é com uma professora, petista da primeira hora. Ela conta que, em novembro de 2003, na Vila Isabel, zona norte do Rio, ‘os militantes tiveram que fugir de velhos furiosos com o recadastramento do INSS’ ordenado pelo ministro petista Ricardo Berzoini. E arremata: ‘O PT oportunista, que só pensa em ganhar eleição, não é o meu partido’.

O personagem da segunda historieta é um empresário que mora na Barra da Tijuca, que se filiou em 2002 – para disputar uma vaga na Câmara de Vereadores. Ele conta a estranheza com que os companheiros receberam a sua filiação. E resume a sua visão: ‘Eu sou a cara do PT novo e o PT novo é a minha cara’.

Falou-se acima de uma exceção. Deveria ter se falado uma exceção e um absurdo – ambos em relação a um mesmo texto.

O texto são trechos de uma entrevista feita com Lula em abril de 2000 pela repórter ‘petista’ por excelência do Estadão, Vera Rosa, que cobre o partido desde quando este perdia uma eleição presidencial atrás de outra.

Os trechos são excepcionais porque o entrevistado, sem tirar nem pôr, é o Lula das passagens talvez mais marcantes do filme Entreatos, de João Moreira Salles (citado no enorme lide da matéria): um contador de histórias nato – no caso, da história das origens do PT – que ri de si mesmo, de companheiros e adversários, com a maior simplicidade.

Dois momentos de ouro puro:

** ‘Quando a gente ia convidar o pessoal para entrar no PT, companheiros como o Genoino perguntavam o seguinte: ‘Mas o PT é tático ou estratégico?’ E eu respondia: ‘Puxa, só quero criar um partido. Não me ponham minhoca na cabeça’.’

** ‘Nós éramos realmente muito estreitos, não vou negar. Na minha cabeça, o dono de um bar já era patrão, já era inimigo de classe.’

O absurdo é essa parte da entrevista (feita para uma reportagem sobre os 20 anos da greve no ABC, em abril de 1980) ter ficado na gaveta durante quase 5 anos. Cousa de doudo! Não é de imaginar que a repórter, ou o jornal, a segurou para soltar nos 25 anos do PT.

Por que não nos 24, ou nos 23, ou nos 22, o primeiro aniversário da legenda com Lula no Planalto, ou nos 21, na maioridade, quando os petistas esquentavam os motores para a quarta campanha presidencial do metalúrgico?

De mais a mais, como dizia o falecido Jorge Escosteguy, ‘gancho é prerrogativa do editor’.

É por isso que Vera Rosa cita Entreatos, e o diretor João Moreira Salles não teve por que citar Vera Rosa quando falava do filme que ia fazer.

[Texto fechado às 16h07 de 14/2]