Discussões acaloradas sobre o que vai sair na primeira página do jornal sempre agitam as redações, mas nunca vêm a público. Na semana passada, vieram. A colunista do Globo Cora Rónai, que também edita o caderno ‘Informática Etc’., comentou na coluna de quinta-feira (10/2) a ‘briga’ que tivera na sexta anterior com os ‘fechadores’ da primeira página da edição de domingo (6/2): ela discordara do destaque dado a Luma de Oliveira, madrinha de bateria de uma escola de samba do Rio. Inconformada, expôs seus argumentos. E recebeu resposta, na sexta-feira, de Ascânio Seleme, um dos três editores-executivos do jornal, responsável pelas edições dominicais. Na nobre página de Opinião.
No sábado, foi a vez dos leitores: a seção de cartas publicou boa parte das muitas mensagens recebidas pelo jornal sobre a polêmica [ver os textos na seção Entre Aspas]. O Observatório procurou o editor-executivo Orivaldo Perin, que participa do processo de fechamento da primeira página do jornal, para falar dessa original exposição de um debate interno. Perin começou na profissão em 1969, trabalhou no Jornal do Brasil (o antigo), na Folha, no Dia (na primeira fase da reforma, com Dácio Malta), no Valor Econômico, no Diário de S. Paulo e no Globo. Desses 35 anos de rodagem, tem uns 20 de primeira página (10 deles no antigo JB). Ele se diz satisfeito com o resultado da iniciativa do Globo. ‘A foto da Luma na primeira não chamou a atenção do leitor nos cinco dias seguintes a sua publicação. No sexto dia, a publicação do artigo do Ascânio implantou a polêmica’, informa. ‘Choveram cartas.’
Pena que as cartas não continuaram nas edições seguintes. Mas o leitorado tem tido peso no Globo, em comparação a outros jornais. Em novembro passado, quando o diário publicou foto ‘antes e depois’ de um assaltante preso e espancado pela polícia carioca, deu-se um auê entre os leitores, e o Globo publicou as cartas nas páginas de notícia [veja remissão abaixo]. Não foi portanto casual a frase de Ascânio em seu artigo: ‘Se fôssemos negar a Luma a primeira página pelas razões expostas por Cora, teríamos que afugentar da capa outros tantos personagens do nosso cotidiano. Notícia tem de ser publicada’.
Um ‘gato’ na capa
Luma em primeira de jornal de carnaval, perdoem os reticentes, faz sentido. A moça é um mito. Sempre freqüentou das capas às páginas de polícia, passando pelas colunas sociais. Anos atrás exibiu na avenida coleira com o nome do ex-marido, poderoso empresário que ela tornou famoso. Rendeu muita foto de capa. Depois ofereceu o pescoço a um bombeiro, em seguida a um policial. A volta de Luma ao carnaval, separada do maridão, envolvida em escândalos e polêmica, linda como nunca, é notícia, sim, em qualquer lugar do mundo. Ou não haveria batalhões de fotógrafos e câmeras em volta dela. Luma é a nossa lady Di, e só Vera Fisher concorre com ela – em polêmicas e capas.
Nesta entrevista por e-mail, Perin concede: fechador de primeira página de jornal pensa na venda da edição quando escolhe foto. ‘Esse negócio de mulher bonita nas primeiras páginas é meio universal’. E pergunta: ‘Não seria porque há muito mais homens que mulheres fechando primeiras páginas mundo afora?’
Sem dúvida alguma! A saída é lutar pela presença feminina no fechamento das capas de jornal. E urgentemente, para que no ano que vem tenhamos um ‘gato’, e não a Luma, abrindo o carnaval carioca.
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Por que o Globo decidiu responder à Cora?
Orivaldo Perin – Não foi o Globo. Aliás, antes é bom falar do ambiente bem democrático aqui da redação. Ninguém, em última análise, tem a última palavra. Quando se trata de notícia, todos podem opinar sobre tudo. Foi só por isso, por exemplo, que a Cora externou seu ponto de vista sobre a publicação da foto da Luma. E resolveu consolidá-lo em sua coluna semanal no ‘Segundo Caderno’. Foi por causa do tom dela na coluna que o Ascânio (que é responsável pelas edições de domingo do Globo) resolveu fazer o artigo, até para explicar ao leitor os motivos que o levaram a optar pela foto.
O argumento da Cora, de que é legítima representante das donas de casa, não é incomum nas redações: profissionais se vêem como leitores. Você é um veterano editor de primeira página. O editor de primeira página se vê como leitor?
O. P. – Sempre. É impossível imaginar uma primeira página de um ponto de vista contrário ao do leitor. Acho que o leitor é o alvo maior de todos os que trabalham num jornal, da telefonista ao diretor. O leitor deve ser a bússola do repórter, do fotógrafo, do diagramador, do editor, do redator, não há como fazer jornal sem tê-lo em mente. Quanto à dona de casa: acho que cada edição de jornal é resultado da soma das experiências e vivências pessoais de cada profissional envolvido no trabalho. Jornal é sempre produto de um trabalho coletivo. Acho que por trás de cada jornalista existe sempre a visão do pai de família, da mãe, da dona de casa, do filho, do intelectual, do cidadão que vive os problemas de sua rua, que fica preso no engarrafamento, que gosta de cinema, de teatro, de música, assim por diante.
Por que vocês gargalharam diante deste argumento?
O. P. – Não me lembro se gargalhamos. [‘Cora finalmente insistiu que devíamos dar ouvidos a ela porque falava como ‘perfeita representante das donas de casa da Zona Sul do Rio’. Bom, aí não houve mais o que discutir, caímos na gargalhada, Cora inclusive, e encerramos a conversa’, diz o texto de Ascânio]. No dia, a discussão com a Cora foi supercordial, como sempre. Aliás, é ótimo conversar com ela. Tem um raciocínio rapidíssimo, superlógico, é muito inteligente e está super-antenada com os problemas da cidade. Durante a conversa, rimos muito com as muitas argumentações de parte a parte.
Um leitor diz nas cartas que vocês deram a Luma porque ela vende jornal. Como é o raciocínio do editor da primeira? ‘Vende jornal’, ‘chama atenção na banca’, ‘atrai o leitor masculino’, o que se diz nessas horas de decisão? Pode parecer bobagem, mas nos meus anos de redação nunca pensei ‘vou fazer isso assim porque vende mais jornal’; pensa-se ‘isso é mais jornalístico’, ou algo semelhante… Como você pensa? No caso, ‘essa mulher é bonita à beça, essa foto está ótima, vamos dar’. É isso? Ou não?
O. P. – Existe, sim, esse negócio de fazer primeira página para vender jornal. Já imaginou você pendurar numa banca um jornal só com letras, sem foto nenhuma? Claro, isso tem pesos diferentes. Nos jornais populares, quando você erra a mão na primeira página, a venda cai, quando acerta, a venda sobe. Nos chamados quality papers, que geralmente contam com muitos assinantes, você tem, claro, que pensar também na venda de banca. Mas sem importunar o assinante, que se sente incomodado quando você carrega nas tintas. Para você ter idéia, a foto da Luma não provocou nenhuma carta ou e-mail de segunda-feira a quinta-feira da semana de carnaval (a foto saiu na capa do domingo de carnaval). As cartas e e-mails choveram na sexta-feira, dia do artigo em que o Ascânio respondeu à coluna dela, que saiu na véspera. Ou seja, a foto da Luma na primeira não chamou a atenção do leitor nos cinco dias seguintes a sua publicação. No sexto dia, a publicação do artigo do Ascânio implantou a polêmica.
A publicação da foto da Luma só teve uma justificativa: ela é notícia no carnaval. E, claro, é notícia por ser um mulherão à frente de uma bateria. Aliás, esse negócio de mulher bonita nas primeiras páginas é meio universal. Não seria porque há muito mais homens que mulheres fechando primeiras páginas mundo afora?
Como vocês viram a reação do leitor? Gostaram? Ficaram chateados?
O. P. – O leitor do Globo gostou (até hoje as cartas e e-mails continuam chegando) porque pôde (como sempre) manifestar sua opinião, contra ou a favor. Você se lembra daquele caso da foto do assaltante com o olho inchado que demos na primeira página? Aliás, era o Ascânio que estava fechando a primeira naquele dia. A foto era uma prova evidente de que o rapaz tinha sofrido algum tipo de violência depois de ter sido preso em flagrante por assaltar um turista. O Globo deu na primeira página e choveram protestos indignados dos leitores, todos contra a publicação da foto que, em última análise, mostrava o bandido como vítima. As argumentações dos leitores eram tão contundentes que o Rodolfo [Rodolfo Fernandes, diretor de Redação] ficou assustado. Será que nosso leitor médio é assim mesmo? Essa era a pergunta. Aí, ele decidiu dar uma página inteira de cartas e e-mails que condenavam a atitude do jornal. No dia seguinte, o jogo ficou equilibrado e conseguimos publicar também cartas que apoiavam o Globo, cuja intenção era simples: informar ao seu leitor que há violência na polícia.