Um vulcão de criatividade. Nasceu no Rio de Janeiro em 1884. Sua primeira erupção foi em 1902, aos 18 anos, no Tagarela. Depois, labaredas em vários livros, revistas, semanários e jornais ao longo da vida: Para Todos, O Malho, Careta, Tico-Tico, Fon-Fon, A Avenida, Revista da Semana, O Cruzeiro etc. Foi lido e visto de cabo a rabo por todo o país. Além de chargista, publicitário e designer gráfico, supervisionou diagramações e chegou a desenhar para dez publicações ao mesmo tempo. Profusão aquecida e alma flamejante em vários veículos de comunicação social no Brasil das primeiras décadas do século 20.
Por outro lado, pacifista, cidadão anti-autoritarismo, descontente e meio libertário. Foi um profissional que soube ler as entrelinhas da linguagem. Rei dos recursos gráficos. Morreu aos 66 anos, na mesma cidade que nascera, num sábado, 2 de outubro de 1950, meses depois da perda da Copa de Mundo de futebol para o Uruguai e um dia antes das eleições que trouxeram de volta Getúlio Vargas ao poder. A brasa final: de acordo com a história (uma das versões), seu corpo caiu como um fruto maduro em cima de uma prancheta de trabalho. Nosso Senhor do Bonfim e Nossa Senhora da Penha deram-lhe a graça e honra de fenecer a última centelha junto daquilo que mais gostava de fazer: caricaturas. Dizem que ao lado estava o esboço da capa de um disco de Braguinha.
Contraditório e profético
Colecionador nato, profícuo, ilustrou diversos temas e assuntos (segundo pesquisadores produziu mais de 100 mil trabalhos), Hermes Tropical, faísca e visionário: ‘Sua clarividência era por via de regra mediúnica. Intuiu o assassinato de Pinheiro Machado; marcou vinte anos antes do prazo exato em que estouraria a II Guerra Mundial; antecipou em quarenta anos o desmonte dos blocos de países comunistas e profetizou que a recém-rebatizada Leningrado voltaria a se chamar São Petersburgo. No próprio Malho, cantou três anos antes a pedra de que Washington Luís romperia com Minas Gerais o pacto do café-com-leite.’ [SIMAS, Antonio Luiz. O Vidente Míope: J. Carlos n´O Malho (1922-1930). Org. Cássio Loredano. Rio de Janeiro: Edições Folha Seca, 2007] Só não previu a Revolução de 1930 liderada por Getúlio Vargas.
J. Carlos é um reflexo cristalino e crítico – com direito a lavas surgindo do Morro do Pão de Açúcar – do processo de modernização e urbanização do Rio de Janeiro. Para alguns, foi um futurista sobre duas rodas. Mas realizou uma interface elaborada com a história. Desde a higienização, traçado urbano, qualidade de serviços públicos, pavimentação, transporte coletivo, sob o olhar maroto, observou em suas crônicas visuais a transformação da metrópole à custa de aumentos estrondosos dos impostos na adequação da capital federal como uma cidade cosmopolita aos moldes de Paris.
Contradições das contradições, parece também ter antecipado o caos urbano, pois investiu contra um dos símbolos de um projeto maior da civilização humana: o automóvel. Por extensão, bem atual, pegando um gancho na fagulha do parágrafo anterior, abriu fogo, mirou e acertou sem querer em mais uma previsão: hoje, a poluição (principalmente a emissão de CO2) é um problema e tanto mundo afora, sem falar no confuso sistema de transporte carioca.
Um pacifista internacional
Apoiou a oficialização do Carnaval (1927) e bateu de frente com os ‘cérebros privilegiados’ da época. Colocou ‘fogo na canjica’ da ‘emergente e estudada’ elite carioca. Na década de 1920, o caricaturista, patriota declarado, insistiu em três pontos fundamentais que ainda rondam um projeto maior, edificante e estatuto sério para o emergente Brasil: o analfabetismo, altos impostos e a corrupção política. Oxalá, creio não estar errado, mas J. Carlos é mais contemporâneo (contemporâneo e coletivo seriam os termos mais impactantes) que muitos artistas que pregam um individualismo massacrante, característica da nossa época. Outro detalhe que não pode passar batido: ajudou também na popularização do futebol, não sem antes criticar a importação (Vasco da Gama X Alfândega) dos materiais para a construção do estádio de São Januário.
Faz parte da memória e história gráfica nacional. Teve a visão modernista (como idéia e necessidade), atração e ação para a heresia no espaço das formas, ao utilizar as suas criações artísticas como instrumento de crítica capaz de colaborar no desenvolvimento de uma mentalidade e cruzada cívica em prol dos valores brasileiros. Malhou na bigorna quente tudo aquilo que fosse ao desencontro dos símbolos que caracterizam uma pátria. E o mais importante: o seu conjunto bem-sucedido de obras realizadas, no seu devido suporte, está correlacionado com a vida social. Obras aparentemente inocentes que partem do realismo para subvertê-lo, utilizando uma liberdade criativa que ironicamente pela visão do espectador, sua experiência e observação, acrescentam ao imaginário coletivo, além do humor e irreverência, um conjunto novo de simbolismos e o antídoto contra o naturalismo (devemos lembrar sempre que o modernismo surge do naturalismo; parte dele para confrontá-lo.
O modernismo é uma reação ao naturalismo enquanto movimento) e uma matriz ainda ligada aos valores conservadores e deterministas. Ou seja, o artista realiza a experiência modernista (parece que inconscientemente, mesmo estando no Rio, por telepatia, dialogava com a turma da Semana de 22. Não temos evidências de ligações ou troca de correspondências dele com os paulistas) da falta de decoro. O interessante também, outro fator que remete ao antinaturalismo, são as formas, traços, cores e suas combinações inusitadas, distorcidas e exageradas de suas imagens em relação às aparências da natureza. Outra questão que merece ser observada em seus desenhos é o caráter anti-acadêmico, não se prendendo aos rigores e métodos adotados por algumas escolas de artes da época no Brasil. As comparações em relação ao naturalismo e o academicismo são importantes para contextualizar o contraste e a experiência do artista; diferenciar que espécie de tensão e crítica ele salienta em relação à cultura e padrões de valores estabelecidos.
Concebeu uma forma alternativa e plural para vivenciar, experimentar e expressar uma percepção sem perder a identidade e o estilo frente às tendências, idéias feitas e crenças dominantes na cultura da época. Olhou para o passado, desviou a direção e realizou a sua progressiva carreira e capacidade imaginativa.
Reavivou em seus desenhos os principais acontecimentos nacionais e internacionais, nos quais o branco, o negro e o índio (também em menor quantidade os imigrantes) formavam a ‘tríade da dignidade nacional’. Descobriu e embalou o Brasil (principalmente na década de 1920) e manteve a sua atitude pacifista internacional (décadas de 1910 e 1940).
Contradições das contradições (novamente), foi um homem de posições políticas conservadoras, todavia defensor da liberdade de expressão.
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Jornalista, escritor, pesquisador e ensaísta, Belo Horizonte, MG