Sunday, 29 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O dilema da imprensa no drama das “crianças invisíveis” em Uganda

Até às 22h de sábado (10/3), 68 milhões de pessoas assistiram ao vídeo Kony 2012  pouco mais de cinco dias depois de ter sido colocado na Internet.  Mas o que impressiona não é apenas a curiosidade em massa por um filme de meia hora que pretende usar os meios de comunicação para transformar um criminoso em celebridade mundial como estratégia para lograr a sua captura.

O vídeo é a principal peça de uma campanha  lançada pela organização Crianças Invisíveis (Invisible Children), criada pelo cineasta norte-americano Jason Russell com o objetivo de prender Joseph Kony, o chefe de um grupo armado que age  no interior de Uganda. Koni é acusado de usar crianças e adolescentes como soldados encarregados de espalhar o terror nas regiões rurais daquele país da África Central, conhecido por ter sido governado pelo excêntrico marechal Idi Amin.

A espantosa velocidade com que o vídeo se espalhou pela internet provocou outro fenômeno não menos impactante materializado nas discussões que  gerou em blogs, twitter, redes sociais e veículos da imprensa.  Em circunstâncias como esta, a variedade de participantes leva inevitavelmente a uma diversidade de dados, fatos e percepções, o que aumenta a complexidade dos temas da agenda noticiosa mundial e complica o trabalho da imprensa.

O vídeo Koni 2012 se baseia numa simplificação da realidade ugandesa (os bons contra os maus) para chegar a uma proposta também simplista:  os maus deve ser eliminados.  Mas a questão é mais complexa porque envolve uma longa lista de estereótipos construídos pela imprensa mundial sobre a realidade africana, interesses eleitorais norte-americanos, campanhas de captação de dinheiro, uso de uma sofisticada estratégia de advocacy (marketing de causas) e o impacto emocional causado pelo uso de crianças tanto para matar como para recolher donativos.

Jason Russel  explora uma situação dramática, comovente e revoltante num vídeo entulhado de clichês que vão desde opiniões de seu próprio filho de três anos para justificar um esforço mundial para capturar Koni, até instruções sobre como colocar o bandoleiro africano na mídia internacional, usando braceletes, doações, kits publicitários etc, passando por inevitáveis depoimentos de estrelas de Hollywood e de políticos norte-americanos em campanha eleitoral. Há pouquíssimas imagens das crianças/soldados de Koni, o que pode ser compreensível dado o fato de que o “exercito” atua em regiões muito remotas da selva ugandesa.  

A dificuldade em entender todas as dimensões do problema colocou a imprensa, especialmente a europeia, diante de um dilema: simplesmente passar adiante os dados brutos deixando ao leitor a tarefa de contextualizá-los, ou assumir que tem responsabilidade em tomar partido da busca de explicações, rompendo com a tradicional preocupação com a neutralidade e isenção.

O desafio dos jornais, como também do resto da mídia, vem do fato de que no episodio Koni 2012 o marketing se tornou tão evidente que o fato jornalístico perdeu parte de seu impacto noticioso.  Isto também é um fato novo em se tratando de eventos de natureza tão dramática envolvendo crianças, sequestros e massacres.  A própria mídia começou a questionar a autenticidade informativa do fenômeno e da sua propagação viral pela internet.

O jornal  inglês The Guardian foi o que levou mais longe essa preocupação ao admitir publicamente que não tinha condições de oferecer ao seu  público uma análise completa do caso e convocou os  leitores para que eles aportassem novos dados, fatos e informações para ampliar o material disponível sobre a denúncia formulada pela organização Crianças Invisíveis criada por Russel e a campanha internacional que ele deflagrou com a publicação do vídeo no site YouTube.

Não é a primeira vez que o jornal convoca seu público para tentar esclarecer uma questão complexa. Ele já fez isto no caso dos documentos com denúncias contra parlamentares britânicos e no do vazamento de e-mails divulgados pelo site Wikileaks.  O reconhecimento da impotência de um jornal em investigar sozinho uma situação complexa marca uma importante mudança na tradicional autossuficiência jornalística e assinala, principalmente, a incorporação dos leitores como parceiros na contextualização de noticias.

Não é de hoje que a imprensa conhece ou finge ignorar a estratégia de organizações internacionais que, em situação de penúria financeira, “descobrem” alguma tragédia ou conflito tribal africano e chamam uma equipe de televisão que filma cenas dramáticas para ser exibidas em horário nobre na Europa e Estados Unidos. No dia seguinte os donativos começam a chover na conta das organizações ao mesmo tempo em que as imagens são exportadas para o resto do mundo.

Este tipo de advocacy promovido por ONGs da Europa e Estados Unidos não é ilegal e nem imoral. Em alguns casos é até louvável, mas a insistência com que passou a ser usado precisa ser questionada pela imprensa para que ela não certifique com sua credibilidade ações que podem levar os leitores à apoiar iniciativas equivocadas ou inconsistentes.