O debate público sobre a internet está alcançando um novo patamar por conta da polêmica em torno do site Facebook, considerado a maior rede social virtual do planeta, com cerca de 900 milhões de usuários. Saiu do terreno da tecnologia e está entrando na seara dos valores culturais, comportamentos e ética.
Enquanto a discussão era entre os nerds da tecnologia, ela era apaixonada apenas quando os egos saiam fora dos trilhos. Agora, a tendência é que a polêmica comece a mexer com aquilo que as pessoas consideram mais valioso: os seus valores. Os valores estão associados à segurança e à estabilidade — e, por isso, quando são questionados, o tom do debate sobe.
Foi o que aconteceu há dias com o debate em torno de um artigo publicado pelo ex-editor chefe do The New York Times Bill Keller, no qual ele compara a invasão da privacidade alheia promovida pelos editores do jornal News of the World, do bilionário Ruperto Murdoch, e a coleta de dados de seus usuários feita pelo Facebook.
Keller foi irônico ao afirmar que “quando Murdoch invade a nossa privacidade, é um crime. Quando Mark Zuckerberg, dono do Facebook faz o mesmo, é o futuro”. A comparação provocou furor entre os defensores e críticos das novas tecnologias de comunicação e informação (TICs). Jeff Jarvis, do blog Buzzmachine, pulou nas tamancas ao protestar que a diferença básica entre Murdoch e Zuckerberg é que o primeiro capturou ilegalmente informações alheias enquanto o segundo as recebe de forma consensual e gratuita.
A polêmica desatada pelo artigo de Bill Keller é apenas uma das inúmeras que povoam não só a internet como toda a imprensa e até mesmo aqui, o Observatório. Muitos dos argumentos levantados hoje sobre a privacidade na internet são quase iguais aos que marcaram a chegada do telégrafo, há quase dois séculos, como mostra o jornalista inglês Tom Stange no livro The Victorian Internet (A internet vitoriana).
O pesquisador e escritor Nicholas Christakis, reproduz em seu livro Connected citações de autores do início do século 20 que lamentam a perda da privacidade provocada pelo fato de que as operadoras de mesas telefônicas podiam ouvir conversas de usuários da linha. Christakis cita trechos do livro America Calling: A Social History of theTelephone to 1940, onde é mencionado o fato de que muitas pessoa “temiam o telefone porque ele impedia pensar antes de responder uma pergunta, como era feito nas cartas”.
No mesmo livro [pág. 267] são feitas referências ao fato de que o uso do telefone permitia que as pessoas ligassem para amigos sem aviso prévio, ato considerado uma invasão da privacidade alheia. Outros ainda se queixavam de que o “telefone permite diálogos sexuais inapropriados e mudanças imprevisíveis nos rituais de namoro”.
A resistência à mudança é um fenômeno tão velho quanto a humanidade. O fato novo provocado pelo debate num ambiente virtual é a sua dimensão. Nunca tantas pessoas tiveram a oportunidade de dar o seu palpite sobre uma mudança tecnologia que está afetando a vida de todos nós, até mesmo daqueles que a ignoram. Não é uma mudança qualquer. Ela já considerada pelos estudiosos como a mais importante desde a descoberta da imprensa, há quase 500 anos.
Com tanta coisa em jogo, não é de estranhar que a polêmica ainda vá esquentar bem mais. Estamos apenas no começo. Estamos na fase da discussão das implicações individuais sobre a disseminação de TICs como o Facebook, Twitter, Google e outras. Não vai tardar muito e entraremos na fase aguda das implicações coletivas — e aí a coisa vai pegar fogo porque envolverá nações, empresas, civilizações, culturas e interesses incalculáveis. De alguma forma já entramos na etapa coletiva, como fica evidente na reação do europeu comum às consequências da crise bancária na zona do euro.
Bill Keller deve ter escrito seu texto movido pela preocupação com a quebra de tabus e mudança de valores na área que ele mais conhece, a da informação publica. Seu texto vale como um desabafo porque não tem base material e nem histórica. Como desabafo é tão válido quanto as milhares de opiniões que circulam diariamente na Web e que formam parte deste imenso manancial de percepções . É complicado, complexo e perturbador, mas é inevitável e de alguma forma alentador porque pela primeira vez na história do homem estamos começando a substituir a força física pela força do conhecimento na hora de discutir mudanças de valores, comportamentos e rotinas.