Moacyr Scliar sempre escreveu com a postura de médico: um pé atrás para observar o mundo, a coragem de meter as mãos nas piores partes do humano, a decisão de, mesmo nas horas difíceis, não se afastar da realidade. Foi assim, deslocado de seu centro, mais como observador que como inventor, que escolheu a literatura. Ainda menino, gostava de ir ao pronto-socorro do Bom Fim, reduto porto-alegrense da colônia judaica, para observar o atendimento aos pacientes e seu sofrimento. Nunca fugiu da dor. Sem ser hipocondríaco, sofria muito, desde cedo, com as doenças dos pais, que lhe despertavam medo e atração.
O interesse pela dura verdade do corpo o levou à medicina, em que se formou em 1962. O interesse pela verdade social o deslocou, anos depois, para a medicina sanitária – tornou-se especialista em saúde pública – que mexe nos subterrâneos da vida. A aproximação da literatura, em que estreou em 1968 com a coletânea de contos O carnaval dos animais, teve o mesmo caráter de inquietação. Imitando os grandes cirurgiões, de quem se exige a mão delicada, Scliar também se debruçou sobre a realidade com as luvas da fantasia. A parábola – na linha de Franz Kafka – logo se transformou em seu método preferido. Narrativa alegórica que, por comparação, evoca outras realidades, a parábola lhe foi muito útil como artifício de sobrevivência durante o regime militar, durante o qual lançou livros importantes, que tratam de temas incômodos como a violência e a mentira, como o romance Mês de cães danados, de 1977, e o livro de contos A balada do falso Messias, de 1976.
‘Fora de si’
Três grandes influências marcam a literatura de Scliar: a presença contínua de Franz Kafka, como ele um judeu deslocado de sua condição; a escrita fantástica de Júlio Cortázar; e a leitura laica da Bíblia, em particular do Novo Testamento, em que as parábolas proliferam. Com eles aprendeu a força da linguagem figurada que, em poucas linhas, e de modo leve e até irônico, consegue dizer as piores verdades.
Seu mais importante romance, O centauro no jardim, de 1980, incluído na lista dos 100 melhores livros de temática judaica dos últimos 200 anos organizada pelo National Yiddish Book Center, dos EUA, usa a figura lendária do centauro, metade cavalo, metade homem, para falar, de forma poética, da divisão que define a alma humana.
Para tratar do tema em geral recalcado da masturbação, Scliar, em Manual da paixão solitária, de 2008 – ganhador do Prêmio Jabuti de Melhor Livro do Ano de Ficção em 2009 – desloca-se até a antiga Judeia para reviver a vida de Judá, o quarto filho de Jacó, e de seus três filhos, Er, Onan e Selá e suas difíceis relações com o amor. Os saltos no tempo e as guinadas próprias da linguagem figurada o conduzem ao coração dos dilemas contemporâneos.
Scliar não se esquivou de temas cruciais, e arcaicos, como a culpa, a melancolia e o mal, que percorrem sua ficção de ponta a ponta, sempre temperados por um humor sutil, que não esconde a origem judaica. Nunca foi um homem religioso. Aos 6 anos, os pais o matricularam no Colégio Iídiche, levando-o a se aproximar melhor (outro deslocamento) da língua alemã falada por judeus. Cinco anos depois, eles o transferiram para uma escola católica onde – mais uma vez ‘fora de si’ – tentou, sem sucesso, uma conversão ao catolicismo. Os dramas espirituais que percorrem os textos sagrados, em suas mãos, se transformam em matéria humana. Em Scliar, a carne sempre vence o espírito.
Prêmios e honrarias
A leveza e a ironia lhe serviram como antídotos para tratar de questões dolorosas sem ceder às pressões do drama. Foi também com leveza e sem afetação que, em 2003, elegeu-se para a cadeira número 31 da Academia Brasileira de Letras. Nunca abdicou da obsessão pela ciência e pelos grandes cientistas, que lhe serviram de modelos para muitas ficções. O médico e indigenista Noel Nutels, por exemplo, é o protagonista de A majestade do Xingu, romance de 1997, e o sanitarista Oswaldo Cruz, de Sonhos tropicais, de 1992. Scliar nunca pretendeu, porém, transformar a literatura em um instrumento da ciência, ou veículo de sua divulgação.
Jamais cogitou que a literatura possa se transformar em uma porta de acesso à religião. Certa vez, disse a respeito de seu fascínio pela Bíblia: ‘Ele não é o fascínio do ateu pela religião, mas do leitor pela narrativa’. Sempre atribuiu à sua origem judaica a persistência de uma pergunta que marca a alma dos judeus emigrados: ‘O que sou exatamente?’ Sem uma resposta, fez da literatura uma forma amorosa de sobrevivência no real.
Autor de mais de 70 livros, entre romances, contos, crônicas e ensaios, Scliar recebeu três vezes o Prêmio Jabuti, a mais tradicional distinção literária do país: em 2009, pelo romance Manual da paixão solitária (eleito melhor romance e melhor livro de ficção daquele ano); em 1993, pelo romance Sonhos tropicais; e em 1988, pelo volume de contos O olho enigmático. Pelos contos de A orelha de Van Gogh, ganhou o prestigioso prêmio Casa de Las Americas em 1989. Também recebeu o Prêmio José Lins do Rego, da Academia Brasileira de Letras, pelo romance A Majestade do Xingu, em 1998, entre outras honrarias.
Scliar morreu ontem [domingo, 27/2], aos 73 anos, depois de sofrer um acidente vascular cerebral isquêmico no dia 16 de janeiro. Ele estava internado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e sofreu o AVC durante uma cirurgia para a retirada de pólipos – espécie de tumores benignos – do intestino. No dia 17, Scliar foi submetido a uma cirurgia no cérebro e passou alguns dias sedado, respirando com a ajuda de aparelhos. Ele deixa a mulher, Judith, e um filho, o fotógrafo Beto Scliar.
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Jornalista