Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Realidade digital e a revisão dos valores do jornalismo

Será que o jornalismo deve mudar suas normas e valores ou simplesmente acomodar-se aos novos tempos da internet? Esta polêmica pergunta foi feita pela professora Eugenia Siapera num artigo publicado no jornal britânico The Guardian, no qual ela não faz suspense sobre a sua resposta.

A questão é polêmica porque envolve toda uma revisão sobre o papel do jornalismo na sociedade e a consequente análise sobre a inserção da atividade no relacionamento entre as pessoas, num ambiente digital. Esta revisão foi precipitada pela divulgação do documento The Post Industrial Journalism (O jornalismo pós-industrial) produzido pelo Tow Center, da Universidade Columbia, de Nova York.

O relatório mostra como o modelo de negócios que viabilizou as empresas jornalísticas contemporâneas perdeu suas bases de sustentação econômica por conta da mudança radical no conceito de notícia, a matéria-prima do jornalismo. A notícia deixou de ser um item escasso, logo valorizado no sistema capitalista, para tornar-se extremamente abundante, com seu valor caindo a quase zero.

Para Eugenia Siapera, a questão levantada pelo relatório não se limita à busca de um novo modelo de negócios, mas também a uma reengenharia nas normas que orientam o exercício do jornalismo. Se a busca de um novo modelo de negócios é o principal dilema enfrentado pelos donos de empresas jornalísticas, a revisão das normas e valores passa a ser um desafio para os profissionais.

A questão levantada pela pesquisadora é instigante porque provoca uma reflexão sobre as normas e valores atuais do jornalismo à luz da nova realidade criada pela avalancha informativa na internet e pela transformação do público de protagonista passivo em ativo na produção de notícias.

Segundo Siapera, normas jornalísticas como o uso da pirâmide invertida, da consulta aos dois lados, do sigilo das fontes, da fixação da agenda pública de debates, por exemplo, precisam ser reavaliadas, da mesma forma que valores tradicionais como objetividade, imparcialidade, exatidão, liberdade de imprensa e relevância deveriam ser reinterpretados dentro do contexto digital.

Mas talvez a principal mudança a ser vivida pelos jornalistas da era digital será a necessidade de conviver com a relativização das normas. Todos nós trazemos embutida na nossa forma de viver a dependência de regras sobre o que e como fazer. É uma forma de buscar segurança quando ingressamos num ambiente profissional diferente. Só que agora a realidade que condicionou a produção dos manuais de redação e os códigos de ética profissional também é nova.

A diversificação dos nichos informativos criada pela internet torna inevitável a preocupação com o conhecimento de microrrealidades que antes não eram diferenciáveis por conta da necessidade de atender públicos amplos capazes de rentabilizar a produção de notícias. Com isso os jornalistas são forçados a abandonar um contexto conhecido e familiar nas redações para se aventurar em espaços sociais pouco conhecidos – como, por exemplos, os formados por grupos marginalizados, minorias étnicas e comunidades aglutinadas em torno a interesses específicos.

pirâmide invertida funciona quando há necessidade de transmitir muita informação em pouco espaço físico para um público indiferenciado. Mas quando a preocupação central passa a ser a contextualização e o foco em nichos informativos, ela deixa de ser a regra mais adequada à realidade. 

O mesmo acontece com a regra dos dois lados, que funciona quando a realidade é vista de uma forma dicotômica. Mas quando a teoria da complexidade passa a orientar a abordagem de fenômenos sociais, a redução da realidade a apenas dois lados se mostra insuficiente para entender os fatos, dados e eventos objeto de coberturas jornalísticas. A notícia passa a exigir uma narrativa bem mais complexa do que a obediência à regra do que, quem, quando, como e por quê.

Quando abordamos a questão dos valores jornalísticos, as mudanças não são menos evidentes. As novas teorias sobre cognição mostram que não existe uma objetividade absoluta, em que um profissional seria capaz de reproduzir a realidade como usando a técnica do espelho. Cada ser humano tem uma percepção individual da realidade, que varia conforme sua experiência de vida, cultura e ambiente social. Logo, uma notícia jornalística é a visão de um jornalista, que pode ter qualificações superiores à média das pessoas em questões de comunicação, mas está longe de ser a expressão do que comumente chamamos de verdade.