Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Monteiro Lobato e o presidente negro

Parece que existe um grande esforço em fortalecer o pensamento de uma nota só, onde Cultura, Educação e Ciência são valores menores, quase entraves ao fortalecimento dos grupos dominantes. As recentes nomeações para os ministérios da Cultura, Educação e Ciência & Tecnologia são sérias evidências desta perversa posição. Por outro lado, assistimos pasmos aos investimentos maciços de estatais ou firmas intimamente ligadas aos ‘negócios’ governamentais, em projetos do tipo ‘chapa-branca’, sejam blogs, portais na internet, televisão, jornais ou mesmo ‘eventos culturais’ dos amigos da corte.

Alguns setores da imprensa ainda investem contra escritores consagrados, como Carlos Drummond de Andrade e Monteiro Lobato, numa verdadeira desconstrução cultural, dando espaços cada vez maiores aos big brothers televisivos. Originalidade e pensamento crítico não são tolerados. Monteiro Lobato não poderia ficar imune. Aos críticos de Drummond, sugiro a leitura de seu poema O Comedor de Chapéu. Sobre Lobato, no artigo ‘Os argumentos da ‘turma do motosserra’‘, neste Observatório, lembro de sua luta contra os destruidores ambientais. Neste artigo comento o tão vilipendiado, mas pouco lido, romance O Presidente Negro.

Este romance, lançado em 1926 por Monteiro Lobato, é uma ficção científica, talvez influenciada por H.G.Wells, que teve suas obras traduzidas no Brasil por este escritor. A história gira em torno de uma máquina para ‘ver’ o futuro, ‘o porviroscópio’. Através desta invenção, o cientista Benson e sua filha Jane mostram o futuro e, em particular, a sociedade norte americana do ano 2228 ao simplório Ayrton Lobo, que após um acidente foi acolhido em um misterioso castelo perto de Nova Friburgo. Aqui, não vamos fazer uma resenha deste livro – que pode ser lido em um fim de semana –, e sim, destacar alguns aspectos desconhecidos na obra de Monteiro Lobato: abordagem do racismo, teorias pseudocientíficas – como a eugenia para a melhoria da Humanidade – e toda a sorte de grosserias sobre as mulheres. Algumas ideias apresentadas neste romance formam a base do fascismo e do nazismo e mesmo muitos dos radicais de direita não ousariam externá-las.

Éguas e pinguins

Através do ‘porviroscópio’ descobrimos um terrível futuro, onde os Estados Unidos do ano 2228 se transformam em uma sociedade de intolerância racial, onde o crescimento demográfico da população negra é combatido a ferro e fogo, ora com técnicas de eugenia, ora com sugestões de exportar esta população para a nossa Amazônia, que era independente da ‘República do Paraná’, constituída pelos estados do Sul e Sudeste, mais Argentina, Uruguai e Paraguai, onde viviam os brancos não miscigenados. Por outro lado, os negros, tal qual o cantor Michael Jackson, tentavam branquear a pele, usando processos de despigmentação, e sonhavam com cabelos esticados. Mas finalmente foi usada uma ‘solução final’ que acabou com os negros que não resistiram à tentação de usar uma eficiente loção ‘desencarapinhante’ que trazia embutida em sua fórmula uma substância esterilizante. Neste ínterim tinha sido eleito um presidente negro, que acaba morrendo de uma maneira não muito bem esclarecida antes de tomar posse, quando tomou conhecimento da monstruosidade engendrada.

O ‘porviroscópio’ mostrava também a situação das mulheres neste futuro, antevendo os corpos femininos ‘malhados’ de hoje, mas, como sempre, primando, no mínimo, pelo ‘politicamente incorreto’, ao comparar mulheres com éguas, como fica explicitado no texto reproduzido abaixo:

‘Finas sem magreza, ágeis sem macaquice, treinadas de músculos por meio de sábios esportes, conseguiram alcançar a beleza nervosa das éguas puro-sangue – o que trouxe a decadência do hipismo. Já não necessitam os homens dedicar-se aos cavalos para satisfação da ânsia secreta da beleza perfeita…’

Falando em outros animais, além das éguas, o ‘porviroscópio’ comete um erro crasso de conhecimento da distribuição geográfica da fauna, pois quando apontado para a Groenlândia vislumbra ursos polares e pinguins. Os pinguins só existem no hemisfério sul e a espécie mais setentrional é o Spheniscus mendiculus, que é encontrada nas Ilhas Galápagos.

Cruel, rancoroso e até nazista

Ao terminar a leitura deste romance fiquei chocado com a desenvoltura com que as ideias racistas se faziam presentes, ao mesmo tempo em que senti uma grande decepção com Monteiro Lobato, pois este escritor sempre falou através de seus personagens e aqui ficava uma dúvida de quem era o verdadeiro interlocutor. Lobato não estaria delirando com as leituras de Nietzsche e com a ideia do seu super-homem? Após sucessivas leituras de trechos do romance O Presidente Negro acabei recompondo a minha admiração por Lobato que, na realidade, com este livro, fez um dramático e realista libelo contra o racismo, os preconceitos e a violência, que poucos anos depois causaram o holocausto de vários povos e os terríveis massacres de populações civis em geral. Infelizmente, estas visões racistas e preconceituosas continuam vivas na indiferença que os chamados ‘povos civilizados’ têm com os massacres diários no Oriente Médio, Afeganistão e Iraque, bem como no tratamento que imigrantes recebem nos Estados Unidos e Europa.

Por outro lado acredito que Monteiro Lobato também percebeu que os complexos de inferioridade – em geral moldados e impostos por uma cultura dominante – de grupos humanos que negam as suas raízes também são uma forma de racismo. E as mulheres na visão de Lobato? Eu poderia até absolvê-lo, usando como justificativa que o autor, no fundo, previa o excessivo culto da forma e beleza física que domina os dias de hoje. Mas acabou caindo em minhas mãos um livro intitulado Um Jeca nos Vernissages sobre as críticas arrasadoras de Lobato à obra de Anita Malfatti. A pintora era considerada uma espécie de musa dos modernistas e, ao retornar dos Estados Unidos no final de 1917, realizou uma exposição de 53 trabalhos de sua autoria assombrando a então provinciana São Paulo com a sua modernidade. Esta mostra chamou a atenção de Monteiro Lobato, que via a arte com um caráter nacionalista, e não universal. Na época, por suas críticas, foi chamado de cruel, rancoroso e até de nazista, tendo sido responsabilizado pelo recuo de Anita Malfatti com relação aos vanguardismos.

Por outro lado quando entramos em uma galeria e deparamos com certas obras expostas como arte, talvez infladas por modismos, interesses comerciais inconfessáveis, ou mesmo como objetos para lavagem de dinheiro, temos que aplaudir Monteiro Lobato, que teve a coragem de escrever sobre a visão de certos críticos de arte:

‘… a conclusão é que o público é uma besta e eles, os entendidos, um grupo genial de iniciados nas transcendências sublimes duma Estética Superior.’

Portanto, a obra de Lobato merece ser lida, pois lá encontraremos muitas reflexões que contribuiriam para alertar contra a cegueira de nossos dias, independentemente de críticas pontuais que certamente faremos.

Leituras sugeridas:

** Reflexões Sobre o Racismo, Jean-Paul Sartre, Difusão Européia do Livro, 1963.

** A arte brasileira em 25 quadros (1790-1930), Rafael Cardoso, Editora Record, 2008.

** Um Jeca nos Vernissages, Tadeu Chiarelli, Edusp, 1995.

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Físico e escritor, Rio de Janeiro, RJ