O comportamento da imprensa na cobertura das manifestações em 100 cidades brasileiras mostrou que ela está despreparada para enfrentar um desafio dessas dimensões e, pior do que isso, se comportou como um partido político, o que aumentou ainda mais o seu distanciamento em relação aos manifestantes jovens.
Já é um fato de domínio comum que as manifestações foram organizadas pelas redes sociais, o que definiu o seu caráter como basicamente juvenil, sem lideranças visíveis e se expressando por meio de uma cacofonia de palavras de ordem e reivindicações. A imprensa perdeu a luta pela instantaneidade porque as redes sociais, blogs e o YouTube foram mais ágeis para informar o que estava acontecendo. A grande vantagem da televisão comercial seria a sua capacidade de mostrar os fatos para grandes audiências, mas este lado positivo acabou neutralizado pelo irritante recurso à editorialização diante da incapacidade de oferecer fatos concretos e opiniões diferenciadas.
O paradigma desse estilo foi o jornalista Marcelo Resende, da Rede Record, que protagonizou um constrangedor espetáculo de diatribes políticas antigovernamentais enquanto os fatos se sucediam diante das câmeras, sem a preocupação com explicações plausíveis. Outros apresentadores seguiram no mesmo caminho, com um pouco mais de discrição, sem no entanto disfarçar um claro posicionamento político.
A grande falha dos jornaisimpressos, revistas, rádios e televisão foi não procurar ir além daquilo que todas as pessoas estavam vendo ou assistindo pessoalmente. Se há um papel que pode evitar o desaparecimento da mídia convencional, este é o de ir além da aparência dos fatos, dados, eventos e processos.
Isso, é claro, exige que os jornais e emissoras assumam que a realidade num momento de crise é necessariamente complexa, ainda mais numa transição de paradigmas políticos como a que estamos vivendo. Todo tema complexo implica necessariamente perspectivas diferenciadas e a necessidade de levar em conta a diversidade de percepções. Implica também incorporar a ideia de que não há apenas um lado certo e outro errado, de que só existem os bons e os maus. Mas o que vemos é nossa imprensa e nossos políticos se refugiarem em posições dicotômicas do tipo justo ou injusto, legal ou ilegal, quando todos sabemos que, como se diz na gíria, “o buraco é mais embaixo”, ou seja, a coisa não é tão simples assim.
Por exemplo, o que fazer com a Copa do Mundo de 2014? Milhões de brasileiros saíram às ruas para protestar contra a caixa preta do financiamento dos estádios. Como as obras ainda não estão terminadas, há duas alternativas principais: tocar em frente e gastar mais dinheiro, o que vai contra o espírito das manifestações, ou parar tudo, o que deixaria muitas empresas, entre elas a TV Globo e as operadoras de turismo, com um enorme prejuízo financeiro, coisa que nenhuma delas está disposta a assumir.
Haveria, teoricamente, uma terceira opção: terminar os estádios numa versão espartana, bem abaixo do padrão Fifa, atendendo às reivindicações dos manifestantes, mas comprometendo seriamente as receitas esperadas com turistas e, com isso, também a recuperação dos investimentos financeiros feitos pelo governo e empresas privadas.
Se examinarmos as exigências políticas como PEC 37, fim da corrupção, melhoria nos sistemas educacional, médico e de transportes, a complexidade é até maior porque mexe com problemas históricos com muitos protagonistas envolvidos.
O Brasil não é mais um pais simplesde ser gerenciado porque o poder das oligarquias políticas e econômicas está ameaçado pelas expectativas da ascendente classe C e pela nova estratégia de ação política, o boca a boca viral pela internet, que transformou os protestos de rua em algo materialmente facílimo de organizar.
Acuada, a presidente Dilma partiu para a ofensiva pedindo um plebiscito para promover a reforma política por meio de uma Constituinte. Ela deu uma satisfação à classe média e à classe C, mas jogou o problema no colo dos deputados e senadores, que obviamente vão fazer de tudo para impedir que o eventual plebiscito tire da classe política o controle da situação, e principalmente impedir que a consulta direta ao eleitorado se transforme numa bandeira do PT, num ano eleitoral. A presidente sabe que a situação é complexa, mas age segundo o velho maniqueísmo partidário. Se ela assumisse a complexidade, a primeira coisa a fazer seria dizer isso de forma transparente para que todos pudessem ser parte da busca de alternativas.
Esta enumeração sumária de problemas mostra que nenhum deles é de solução fácil e não temos alternativa senão cobrar da imprensa convencional uma preocupação em enfrentar o desafio da complexidade. As redes sociais são ótimas, até insuperáveis, na articulação e diversificação de desejos e necessidades dos setores sociais tradicionalmente sem acesso à mídia tradicional, mas têm bem menos capacidade analítica e pedagógica do que os jornais, revistas, rádios e TVs. O governo, partidos e empresas têm interesses corporativos a defender, terão pouca vontade de explicar o que não lhes convém.
Caso a imprensa não assuma esse papel analítico e investigador, ela estará se tornando definitivamente descartável.