Quando os caminhoneiros bloqueiam estradas usando como justificativa reivindicações difusas, eu sinto um frio na espinha. Foi exatamente assim que há quase 40 anos começou a cair o governo de Salvador Allende, no Chile. A conjuntura daquela época, a que eu assisti como correspondente do extinto Jornal do Brasil, tem muitas semelhanças com a do Brasil atual.
Governos contestados pela oposição conservadora tornam-se vulneráveis pela fragmentação de sua sustentação política enquanto seus adversários criam um ambiente de intranquilidade social por conta de uma sucessão de protestos e atos geradores de instabilidade e insegurança.
Muita coisa mudou nestas quatro décadas, mas o bloqueio de estradas continua sendo uma arma politicamente letal. Ela corta a circulação de mercadorias em países vitalmente dependentes dos transportes terrestres. Hoje ainda mais dependentes porque aumentou também exponencialmente a circulação de pessoas. Com a desestabilização dos circuitos vitais de circulação de mercadorias vem o desabastecimento, a inevitável alta dos preços que retroalimenta a inflação e a especulação no consumo.
A incerteza social aguça as divisões entre os setores que apoiam o governo, uns apelando para a radicalização como forma de enfrentar as manobras oposicionistas e outros defendendo o realismo como estratégia mais adequada para tentar empurrar o problema para frente a espera de um “milagre político”. Quando o falecido Allende passou a ter que enfrentar a guerrilha dos esquerdistas do Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU), a esquerda chilena colocou a cereja no bolo da direita.
Tanto quanto no Chile, em 1973, a presidente Dilma Rousseff não conta com a imprensa, é tolerada pelos segmentos empresariais, vista com desconfiança pelos militares e obrigada a lidar com um parlamento dividido. A grande diferença é que, na época de Allende, os parlamentares não eram tão impopulares quanto agora no Brasil.
O fato de os caminhoneiros brasileiros terem começado a bloquear estradas com uma pauta de reivindicações superdiversificada não pode ser visto como uma reedição do fenômeno chileno porque há diferenças notáveis. A principal delas é que não vivemos mais no ambiente polarizado da Guerra Fria, mas há também outras diferenças como o fato de o Brasil estar num momento de expansão econômica e de que existe uma instabilidade econômica mundial, ao contrário do que acontecia em 1973.
Mas o bloqueio de estradas mostra que existe uma estratégia em desenvolvimento visando minar as bases do governo ao anular o efeito do crescimento econômico por meio da revitalização do fenômeno da inflação e a geração de um clima de incerteza a partir da manipulação da percepção popular de protesto de rua que são mais contra um sistema do que contra um partido político. Ambas são estratégias políticas de alto risco.
As manifestações em todo o país brotaram de um sentimento de frustração com o sistema político do país, que gera a exclusão e uma multidão de cidadãos invisíveis. A presidente Dilma em nenhum momento foi hostilizada pelos milhões de pessoas que saíram às ruas mobilizadas pelas redes sociais. Mas a complexidade política inerente a um protesto que fugiu da rotina e de modelos preestabelecidos acabou sendo gradualmente submetida ao processo que os norte-americanos chamam de “reframing”, literalmente reenquadramento.
Não se trata de falsificar grosseiramente a realidade, mas de mudar o ângulo de percepção. A opinião de uma pessoa depende da forma como ela vê os fatos. Assim, uma mesma coisa pode ter significados diferentes para duas pessoas distintas e em contextos desiguais. E é justamente o que está acontecendo agora, como consequência do “reenquadramento” – influenciado pela imprensa – da agenda pública de debates gerada pela onda de manifestações que vai completar um mês.
Os jovens que deram o pontapé inicial no mais amplo movimento de protestos das últimas décadas criticam o sistema político materializado no Congresso Nacional e não se opõem frontalmente à proposta do plebiscito sobre reforma política porque a consulta sinaliza uma intenção de mudança – a ideia que uniu os milhares de manifestantes. Mas os setores conservadores não querem o plebiscito porque isso significaria um atalho entre o poder executivo federal e a opinião pública, privando os políticos de sua principal arma, a barganha eleitoral.
A mídia está abandonando o discurso da mudança e passando a bater na tecla da instabilidade econômica e da incerteza social, bem como na chatíssima discussão sobre entraves burocráticos ou filigranas jurídicas a propósito da realização de um plebiscito, ou de um referendo que pode acabar visando virando a uma consulta paralela simultânea às eleições presidenciais de 2014.
Este provavelmente será o “enquadramento” da crise no contexto oficial, aquele formado pelo lobby em torno da luta pelo poder. Mas diferentemente de 1973, hoje existe a internet e com ela um outro contexto formado por aqueles que recorrem às redes sociais para se informar e praticar o boca a boca virtual. Este “submundo” virtual mostrou a sua força ao detonar o estopim dos protestos de rua. Ele é difuso, imprevisível e fluido. Quase impossível de ser controlado – e por isso ele é a grande incógnita no processo político brasileiro.
O movimento dos caminhoneiros brasileiros assusta pela associação com lembranças de um passado triste e nos leva a ter que pensar em vez de agir com base na paixão. A grande preocupação é o que não conhecemos, como o poder político das redes sociais, em vez de repousarmos sobre aquilo que já sabemos, a dança dos políticos em torno do poder para garantir seus empregos.