Produtos pagos que não são entregues. Ou são entregues com defeito. Operadoras de telefonia e de banda larga que pegam o cliente em arapucas, vendendo velocidades que não entregam. Débitos indevidos lançados em contas de banco. Não há solução para os problemas relatados ou os prazos não são cumpridos. Colchões repletos de cupins, que levam o cliente, de colchão novo, a dormir no chão. Aparelhos de ar-condicionado que não funcionam.
Para a história dos usos e costumes brasileiros, para um capítulo de história das mentalidades, as cartas dos leitores de qualquer periódico oferecem abundante e rico material de consulta.
Tomo como exemplo a edição de O Globo da quarta-feira de cinzas (9/3), seção ‘Mala Direta’, pág. 17 do primeiro caderno.
Fabrício Ribeiro, do Rio, informa que, morando no Realengo, precisa tomar um ônibus da Auto Viação Bangu às 5h30 da manhã. É a linha 383. Segundo ele, os atrasos são constantes e ele só consegue embarcar às 6h30. Ele desce no Maracanã e por isso precisa pegar o primeiro ônibus que vai para Ipanema, onde trabalha. ‘Só consegui utilizar o bilhete único apenas um dia’, diz ele.
Seu drama continua. Chegando constantemente atrasado ao trabalho, arrostando prejuízo de novos bilhetes e esperando uma hora no ponto do ônibus, recorreu à empresa de transportes. Ali foi informado que não há mais ônibus porque a prefeitura não libera. A prefeitura lhe disse que essa informação não procede.
A Auto Viação Bangu respondeu que a reclamação do leitor é absurda, que tem meios de demonstrar, por GPS, que isso não ocorre. E convida o leitor a visitar a empresa e verificar pessoalmente o sistema.
Conclusão: a velha máxima de que o consumidor sempre tem razão, serve para quê?
Extorsão garantida
É preciso que a imprensa paute os atrasos de ônibus e verifique com a autoridade de um órgão de informação o que acontece. Os leitores do jornal concluem que empresa e prefeitura provavelmente falharam em suas respectivas obrigações, mas quem pagou o pato foi Fabrício Ribeiro que, se nada for feito, ainda perdeu o tempo de escrever ao jornal. Uma reportagem poderia esclarecer esse e outros casos – afinal trata-se de transporte público, não deve ser um tema tão estranho à pauta de jornais diários.
Maria da Glória D’Angelo solicitou um reembolso à empresa aérea Webjet no dia 12 de dezembro de 2010. De acordo com a própria companhia, o prazo para o cliente receber em tais casos é de trinta dias. Até o dia 9 de março, nada havia sido feito. A redação de O Globo, como de costume, procurou a empresa. Vejam a resposta:
‘A Webjet Linhas Aéreas Econômicas esclarece que um o reembolso dos bilhetes foi solicitado em 12 de dezembro, contudo, ocorreu um problema no sistema de reembolso que culminou no atraso do processamento do estorno. A empresa informa ainda que os reembolsos já foram reprocessados e encaminhados para contabilidade para serem creditados’.
Em resumo, mais um cliente que não foi atendido. Desculpas semelhantes a essa da Webjet atormentam os clientes ou consumidores em todas as instâncias, modalidades e níveis. O que vale para as empresas – o sistema está fora do ar, a contabilidade não recebeu a papelada, o ‘financeiro’ ainda não providenciou etc. – não vale para os clientes – vale dizer, para os cidadãos. As empresas têm a seu favor a temível Serasa e outros órgãos de proteção ao crédito, que acabam por ser também de proteção a extorsões, pois o dinheiro do cidadão foi parar nos cofres das empresas, sem que o serviço tenha sido prestado. E o que faz o cidadão ao receber o aviso da Serasa? Vai queixar-se ao bispo?
Acima da lei
Um episódio famoso, ocorrido na Alemanha em 1745, mostra o que pode fazer um cidadão lesado. No caso, estava nascendo essa figura jurídica e social, que veio a consolidar-se com a Revolução Francesa! ‘Às armas, cidadãos!’, é o grito da célebre marselhesa.
Aqui os leitores podem ver uma crônica que publiquei na revista Época, em 7/5/2001, sobre esse incidente. Um intendente passou a ameaçar o proprietário de um moinho. Este ameaçou ir aos tribunais. A querela chegou aos ouvidos de Frederico II e o monarca foi conversar com aquele homem que lhe parecia tão corajoso. Perguntou-lhe qual o motivo de ele não ter medo de ninguém, nem do rei. A resposta do moleiro foi resumida em frase que se tornou célebre, depois frequentemente invocada em situações em que o Judiciário é chamado a limitar o poder dos governantes: ‘Ainda há juízes em Berlim’. Ele lutaria contra o rei na Justiça.
Até Frederico II precisou entender-se com um simples moleiro. No Brasil, muitas empresas põem-se acima de imperadores, pressupondo que não devem explicações de seus atos e omissões a ninguém.
Por enquanto ainda têm seu despotismo limitado pela imprensa e pelo Judiciário. Por ninguém mais. Se Anac, Anatel e congêneres funcionassem, não viveríamos o descalabro que hoje vivemos no Brasil.
Por enquanto, o Brasil, em muitos casos, não chegou a 1745. Personalidades, físicas como muitos políticos, ou jurídicas como muitas empresas, vivem à margem e acima da lei. Os casos aqui relatados e o projeto Ficha Limpa são indicadores de que a sociedade reage e que essas lutas começam a aparecer na mídia e no Judiciário. Embora para a mídia alguns continuem se lixando e se elegendo, avanços significativos têm ocorrido, mas ainda é preciso lutar muito para corrigir distorções como essas de que esse artigo, em pequeníssima amostra, se ocupou.
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Escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor, pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)