Durante a Guerra Fria, quando as grandes potências travavam uma guerra de informação e contrainformação, o jornalismo era tratado como um aliado estratégico por ambos lados. Agora, na realidade digital, a atividade jornalística virou um alvo para governos, não importa a sua tendência.
A mudança começou a ficar clara nos últimos episódios envolvendo a publicação de dados sobre o monitoramento secreto de mensagens pessoais no correio eletrônico e nas redes sociais pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos.
Prisões, exílios e intimidações passaram a fazer parte da estratégia dos serviços de inteligência para tentar impedir que os jornalistas, profissionais e não profissionais, usem a arma da transparência informativa, cujo poder tornou-se potencialmente devastador na era digital.
Tudo isso acontece porque a combinação da internet com a digitalização mudou o caráter da informação. Na Guerra Fria era essencial ter a informação, guardá-la e negociá-la. Agora, o mais importante é usar a informação, porque ficou muito difícil impedir vazamentos.
Antes a informação precisava ter um suporte físico (papel, frequências eletromagnéticas, celuloide etc.), mas agora ela é imaterial (bytes e bits), o que a torna fluida, fácil de ser copiada e transmitida em fração de segundo para milhões de pessoas.
A combinação de maior facilidade no vazamento de grandes massas de informação com mais rapidez e amplitude na disseminação caiu como uma luva para o jornalismo, que passou a ocupar uma posição chave na divulgação daquilo que os serviços de inteligência pretendem ocultar. O termo jornalismo é usado aqui para incluir tanto os profissionais como os cidadãos sem diploma que praticam atos jornalísticos ao revelarem informações de interesse público.
As agências estatais de espionagem sabem como monitorar o que outros países e indivíduos fazem na internet, mas têm uma grande dificuldade para impedir que elas também sejam monitoradas. A maioria dos organismos de inteligência ainda vive a cultura da informação armazenável, por isso reagem com violência quando, por exemplo, um soldado americano divulga segredos das ações militares do Pentágono no Iraque ou quando um ex-funcionário da CIA revela que a privacidade de milhares de cidadãos foi quebrada ilegalmente pela NSA (Agência de Segurança Nacional) dos Estados Unidos.
Na era da informação escassa e armazenável, a imprensa e os jornalistas dependiam dos governos para obter boa parte da informação publicável. Agora, na sociedade da abundância informativa, as fontes de notícias se multiplicaram e o jornalismo passou a depender mais dos leitores do que dos burocratas, principalmente quando o material vazado tem interesse público, como no caso das mensagens em redes sociais e no correio eletrônico.
Os jornais passaram a ser alvo de pressões crescentes, como mostra o caso do britânico The Guardian, que foi forçado a destruir o computador onde guardava os dados sobre o monitoramento da NSA fornecidos pelo ex-funcionário da CIA Edward Snowden. Mas o próprio jornal ironizou a ação dos arapongas britânicos ao revelar que todos os dados já haviam sido espalhados pelo mundo noutros computadores.
The Guardian e o norte-americano The New York Times formalizaram uma aliança inédita na imprensa mundial para compartilhar os dados fornecidos por Snowden, numa clara manobra de resistência à pressão dos serviços de inteligência. A imprensa está descobrindo que sua sobrevivência depende do fornecimento ao público das informações que ele deseja conhecer, como é o caso da privacidade nas comunicações pessoais via internet.
A guerra de informação entre serviços de inteligência e os jornalistas tende a continuar porque os organismos de segurança não conseguem atualizar sua forma de agir e de pensar. A inteligência britânica, por exemplo, alegou que os dados de Snowden não podiam ser divulgados porque só os seus agentes é que podem decidir quais informações são estratégicas para a segurança nacional.
A argumentação é típica de quem ainda acha possível ter o controle total da informação, coisa que a imprensa e os jornalistas estão descobrindo de forma dura e traumática, haja vista a crise no modelo de negócios dos jornais e o desemprego nas redações. Esta semana, o site Follow the Media, mantido por uma empresa europeia de consultoria, citou o escritor Mark Twain que há mais de um século advertiu: “Nunca lute contra alguém que compra tinta a granel”, numa referência ao poder dos jornais impressos. Para Follow the Media (acesso exclusivo para assinantes), o mesmo alerta poderia ser formulado hoje da seguinte maneira: “Evite confrontos com quem está acuado contra o muro do acesso pago” (paywall) . Muitos jornais tradicionais tentam sobreviver cobrando pelo acesso às suas versões online.