Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O maior desafio do jornalismo no início da era digital

A relação com os leitores, ouvintes, telespectadores e internautas passou a ser o principal objetivo estratégico em grandes empresas jornalísticas em luta pela sobrevivência no disputado mercado da audiência em jornais, revistas, telejornalismo audiovisual e páginas web de noticiário. É que as empresas já se deram conta de que não é mais viável apoiar o modelo de negócios apenas nas receitas publicitárias.

O novo objetivo marca também uma guinada radical na estratégia editorial dos veículos porque a busca de fidelização inevitavelmente implica a necessidade de retribuição, ou seja, a prestação de algum tipo de serviço. Até agora a imprensa usava a notícia com moeda de troca, mas esta matéria-prima se tornou tão abundante e onipresente que o seu preço despencou, tendendo a zero.

O relacionamento com o público, ou o engajamento comunitário (expressão traduzida do jargão inglês community engagement) é um desafio há pelo menos quatro anos para a maioria das páginas noticiosas online preocupadas em sobreviver na concorrência brutal entre projetos muito parecidos. O grande obstáculo sempre foi a questão dos comentários postados por leitores, uma forma de dar participação do público mas que funciona como uma faca de dois gumes, dada à forte incidência de intervenções agressivas, irresponsáveis e xenófobas.

Para obter a fidelização do público, por enquanto as empresas dependem de duas estratégias principais: oferecer serviços de interesse e utilidade para sua clientela ou admitir participação por meio de comentários. A prestação de serviços esbarra na relação custo/benefício, embora já existam várias experiências em curso, especialmente nos Estados Unidos. Mas a questão dos comentários ainda provoca discussões agudas nas redações.

Há duas linhas predominantes no que se refere à participação do público: a humanizada e a baseada em algoritmos. A humanizada pressupõe a mediação de jornalistas profissionais visando a formação de comunidades de leitores, ouvintes, telespectadores ou internautas por meio da troca de opiniões e dados sobre temas de atualidade. A experiência mostrou que o processo mediado é o mais eficiente em termos de fidelização, mas é de médio e longo prazo, além de exigir a especialização de um ou mais jornalistas.

O uso de softwares baseados em algoritmos é a opção preferida de quem busca resultados rápidos e com pouco envolvimento das redações. É o objetivo do projeto que acaba de ser anunciado pelos jornais norte-americanos The Washington Post e The New York Times, em parceria com a empresa Mozilla, criadora do navegador Firefox (ver, neste Observatório, “Jornalões se unem para melhorar sistema de comentários online”). O projeto conta com um financiamento de 3,9 milhões de dólares que serão gastos no desenvolvimento de uma plataforma gerenciadora de comentários, usando processos analíticos e de linguagem natural para selecionar as contribuições relevantes e eliminar os comentários agressivos, xenófobos e/ou contenham dados falsos.

O acordo entre o Post e o Times é original não apenas pelo fato de buscar uma solução tecnológica para uma questão de fundo social, psicológico e político, mas também porque marca uma inédita colaboração entre empresas concorrentes. Se dependesse apenas dos dois jornais, provavelmente a experiência não aconteceria dada a rivalidade passada, mas como ambos enfrentam agruras financeiras decorrentes da queda da receita publicitária, o financiamento por parte de uma fundação norte-americana funcionou como eliminador de velhas desconfianças.

O certo é que o relacionamento com a audiência passou definitivamente para os primeiros lugares na estratégia de sobrevivência das empresas jornalísticas. Após mais de um século de olímpico distanciamento em relação ao público, as corporações do setor da comunicação estão sendo obrigadas a rever modelos em consequência da generalização do uso das novas tecnologias de comunicação e informação. Não é uma mudança simples de rumo e os conflitos culturais da nova orientação mal começaram a ser identificados.

O grande desafio é como os jornalistas e executivos de jornais aceitarão um diálogo em pé de igualdade com o público. A imprensa sempre assumiu um certo ar de superioridade em relação aos leitores, ouvintes, telespectadores e internautas. Era uma comunicação unidirecional e hierárquica. A nova realidade digital está empurrando as redações para uma relação multidirecional e igualitária, que obriga os profissionais a ter que lidar com o ressentimento de uma parcela considerável do público. A experiência tem mostrado que isso exige paciência, tolerância, persistência e, principalmente, muita informação.

Multidirecional porque as redes sociais implantaram o sistema “muitos-para-muitos” ao descentralizar o tráfego de mensagens escritas, sonoras e visuais. Antes era um jornalista respondendo para muitos leitores, uma mesma carta. Agora os leitores tendem a ocupar os espaços e discutem entre si, independente do que propõe o jornalista ou o veículo de comunicação. Muitos comentaristas já se consideram donos dos espaços para reações do público.

Um sistema igualitário de comunicação porque o jornalista não pode mais dar conta sozinho da filtragem, seleção, agregação de valor e distribuição da massa de dados que passou a compor o fluxo diário de notícias. Os profissionais precisam da colaboração do público e, para que isso aconteça, é necessário um ambiente de parceria entre iguais, com responsabilidades, habilidades e competências diferentes.

A experiência tem mostrado também que o grande problema no chamado engajamento comunitário do jornalismo digital não é a tecnologia, embora ela seja um componente importante e indispensável. A questão crucial está no problema cultural, porque este depende de seres humanos, cuja adaptação às consequências da introdução de novas tecnologias é historicamente um processo complexo, lento e imprevisível. Este é talvez o maior de todos os dilemas do jornalismo do século 21.