Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os esquecidos dos esquecidos

Os estrondosos protestos na Tunísia, Egito, Barein e Líbia têm atraído a atenção de muita gente cujo horizonte de preocupação não era o mundo árabe. Para o senso comum afastado dessa realidade, ainda persistem muitos preconceitos e ideias equivocadas dos hábitos e costumes dos povos islâmicos, de suas crenças e de sua maneira de organização. Por conta da cobertura jornalística dessa ‘nova onda islâmica’, cada vez mais temos voltado nossas cabeças para nações que só ocupavam lugar em nosso imaginário fantasioso. Isso é bastante positivo para fazer erodir algumas pilastras do senso comum, o que ajuda a ampliar a noção de mundo de muita gente e contribui para difundir uma preocupação mais global da correlação de forças políticas atuais.

Por vício das redações, por interesses políticos, altos custos ou por descaso mesmo, os meios de comunicação brasileiros não oferece grandes coberturas internacionais. Ao menos na maioria das vezes. Negligenciamos até mesmo os vizinhos da América do Sul. Quanto mais países que pouco pesam em nossas balanças comerciais ou que quase nenhuma influência exercem nas decisões do governo brasileiro. De maneira geral, é mesmo muito raro encontrar nas páginas de jornais ou segmentos de telejornais notícias de certos cantos do mundo. Ouve-se falar pouco da Oceania, mas a Austrália acaba ‘salvando’ o continente dessa invisibilidade. Já a África é um caso clássico desse esquecimento midiático; um conjunto de cinquenta nações parece simplesmente inexistir em nossa mídia. É uma ‘mágica’ geográfica que ‘aumenta’ o Atlântico e liga a América à Europa e ao Oriente Médio, quase sem nenhuma interrupção.

Ações efetivas

A cobertura da ‘nova onda islâmica’ colocou uma parte da África novamente no mapa, muito por conta dos países dominados por ditadores. Voltamos a falar de Kadhafi e Mubarak, por exemplo. Alguns dos veículos de comunicação brasileiros mandaram seus correspondentes atravessar o Mediterrâneo para cobrir os conflitos no norte africano. Ótimo! Mas na mesma ocasião em que isso acontece, outros tantos confrontos ocorrem no mesmo continente, e insistimos em ignorá-los.

Na semana que passou, por exemplo, mais de duzentas mil pessoas deixaram suas casas na capital da Costa do Marfim por conta de conflitos que devem provocar em breve uma guerra civil. No Congo, a temperatura está subindo também. No Sudão, a ONU faz a intermediação entre governo e o Movimento Igualdade e Justiça para a libertação de prisioneiros políticos. Em outros países, não apenas os conflitos armados e as disputas tribais, mas também a escalada da Aids, doenças endêmicas, fome e miséria, corrupção e regimes truculentos fazem da África um cenário a ser observado por todos que têm um pingo de sensibilidade humana.

O fato é que mesmo no continente esquecido, há mais e mais esquecidos. Parece haver uma perversa hierarquia que escolhe entre cobrir os protestos no Egito a ignorar as matanças em Angola.

Onde entra o jornalismo nisso tudo? Justamente numa de suas funções, numa das tarefas que o público lhe delegou: a de denunciar situações que merecem a nossa atenção. Se tivermos mais repórteres na África, teremos mais notícias e informações sobre os seus países. Se tivermos mais conhecimento do que se passa por lá, poderemos nos organizar melhor para pensar soluções, poderemos exigir ações mais efetivas. Pode parecer utópico ou irreal, mas o que podemos fazer: esperar passivamente que aconteça como no genocídio de Ruanda, de 1994, quando mais de meio milhão de pessoas foram mortas de maneira selvagem e cruel?

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Jornalista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS