Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Guerra na polícia de São Paulo atinge a Folha

Não é só no Rio de Janeiro que o aparato de segurança pública abriga conflitos explosivos. No Estadão desta sexta-feira (11), a revelação de imagens do circuito interno do shopping Pátio Higienópolis, mostrando encontro do secretário de Segurança, Antônio Ferreira Pinto, com o repórter Mario Cesar Carvalho, da Folha de S. Paulo, é tratada sob o título ‘Policiais espionaram secretário da Segurança’.


Segundo o secretário, citado no Estadão, a conversa no shopping foi sobre caso que envolvia uma escrivã de polícia despida por corregedores durante uma revista. Segundo blogues que divulgaram as imagens, a conversa foi sobre atividades irregulares de um funcionário da secretaria, o sociólogo Túlio Khan, acusado de vender dados sigilosos e demitido no mesmo dia em que a notícia foi publicada pela Folha. Um desses blogues é atribuído a policiais civis. É anônimo. Convém lembrar que a Constituição de 1988, ao garantir a livre manifestação do pensamento, proibiu o anonimato.


Vigiado pela ‘banda podre’


O repórter Mario Cesar Carvalho deu ao Observatório da Imprensa entrevista em que avalia o episódio [ouça aqui]:


Mario Cesar Carvalho – Eu tenho a forte impressão de que estou sendo espionado pelo que eu chamaria de banda podre da polícia. Por banda podre da polícia entenda-se delegados investigados sob suspeita de corrupção. Há vários casos em curso aqui em São Paulo que mostram suspeitas de desvios no Detran, que é a polícia de trânsito, e no Denarc, que é a de narcóticos. Eu tenho a forte impressão de que essas pessoas me seguem, ouvem minhas conversas no celular, a ponto de saberem onde eu estou.


Este quadro faz parte de um panorama maior, que é uma guerra não declarada, uma guerra surda, entre o secretário de Segurança, Antônio Ferreira Pinto, e o secretário de Transportes, o Dr. Saulo [de Castro Abreu Filho], que ocupou a pasta de Segurança no governo anterior de [Geraldo] Alckmin. O grupo do Saulo foi fortemente afetado pelas medidas que o Ferreira Pinto adotou, buscando moralizar a polícia. A reação desses policiais parece vir dessa forma: chantagear a imprensa, espionar jornalista. Só que a Folha, obviamente, não se curva diante desse tipo de chantagem.


Qual é sua opinião sobre a captura de imagens do circuito interno do shopping?


M.C.C. – O vídeo em si é uma violação da intimidade. Não há ordem judicial para o shopping entregar essas imagens.


Esse fato dá margem à abertura de um inquérito policial?


M.C.C. – Eu espero que a polícia abra um inquérito, porque houve ali, obviamente, um crime. A divulgação de imagens sem autorização judicial, imagens captadas por circuito de segurança, é um crime.


Secretaria fala em espionagem


O episódio é de tal magnitude que mais da metade do Painel da Folha de hoje é dedicado a ele, além da capa do caderno Cotidiano. Nessa reportagem, o jornal cita manifestação da Secretaria de Segurança. A Secretaria vê ‘forte indício de que grupos criminosos utilizaram [as imagens] para espionar o primeiro escalão do estado e o trabalho da imprensa’. Essa convicção corrobora o que o repórter Carvalho disse ao Observatório da Imprensa.


A divulgação das imagens será objeto de investigação, anunciou o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Fernando Grella Vieira. A reportagem informa ainda que, após o governador Geraldo Alckmin ter dito que ninguém do governo do estado solicitou as imagens, o Shopping Pátio Higienópolis, que antes havia atribuído a ‘órgãos oficiais’ a solicitação, passou a dizer que entregou o material a ‘policiais’.


Enredo cinematográfico


Não se menciona o assunto na Folha, mas parece evidente que o shopping carece de orientação jurídica adequada. Entregar imagens a policiais não garante que elas serão usadas corretamente. No Estadão, a informação é de que policiais teriam induzido o shopping a entregar as imagens, alegando que investigavam ‘uma ocorrência de outra natureza’. Como existe um clima de grande apreensão nos shoppings, devido a seguidos assaltos, a direção da empresa poderia supor tratar-se de trabalho preventivo. Isso atenuaria a lambança do shopping, mas não sua recusa a informar quem exatamente recebeu as imagens.


A Secretaria de Segurança, diz a Folha, pedirá hoje ao shopping a identidade dos policiais. Mas, na mesma reportagem, lê-se o seguinte:







‘O primeiro a divulgar as cenas foi o radialista João Alkimin, no site Veja [o nome correto é ‘Vejo’] São José. Apesar de não haver indicação no vídeo, ele disse que o encontro ocorreu às 19h30 de 25 de fevereiro. A reportagem da Folha sobre Túlio Khan saiu em 1º de março.


A mulher do radialista, Tânia Nogueira, é advogada de Ivaney Caires de Souza e Everardo Tanganelli, dois delegados que perderam espaço na gestão Ferreira Pinto.


O radialista nega relação entre o vídeo e sua mulher.


O delegado Souza estava no shopping, com uma jornalista da Folha, no momento em que Ferreira Pinto se encontrava com Carvalho.


Souza diz ter visto o secretário, mas nega ligação com a divulgação das imagens’.


Enredo digno de filme de suspense. Uma coincidência teria desencadeado a trama.


No Painel, aborda-se o lado político da crise. Avalia-se que o episódio desgastou o secretário Ferreira Pinto, mas que ele continuará à frente da pasta pelo menos enquanto Alckmin procura ‘um substituto que não sinalize a capitulação do governo estadual diante de setores da Polícia Civil descontentes com o secretário’.


O que não está escrito, e chama a atenção, é que o secretário tenha marcado encontro fora de seu gabinete para conversar com o repórter.
Tudo bem que nem todos os contatos entre jornalistas e secretários ou outras autoridades devam ser feitos na sede da Secretaria, mas é de se presumir que nesse ambiente o secretário não se sinta à vontade para receber jornalistas, ao menos em determinadas situações.


Isso faz lembrar o relato de um velho amigo, já falecido. Há cerca de 35 anos ele foi chantageado numa transação comercial, sofreu ameaças, e tinha um caminho para levar o assunto ao então governador de São Paulo, Paulo Egídio Martins. No Palácio dos Bandeirantes, narrou sua história. A primeira coisa que Paulo Egídio perguntou foi: ‘Você já contou isso à polícia?’ E meu amigo: ‘Não’. O governador: ‘Ufa, ainda bem…’


Delegado demitido


Na reportagem do Estadão, a interpretação de que todo o episódio faz parte de um conflito entre Ferreira Pinto e o secretário de Transportes Saulo de Castro Ferraz Filho, ex-secretário de Segurança, é atribuída a ‘sites mantidos por policiais civis’. O jornal dá outra informação relevante:







‘Antes que o vídeo fosse divulgado […], uma pessoa que se identificou como o ex-delegado de polícia Paulo Sérgio Oppido Fleury dizia ter cópia das imagens e ameaçava divulgá-las nos sites. Filho do delegado Sérgio Paranhos Fleury, símbolo da repressão durante a ditadura militar, ele foi demitido da polícia por Ferreira Pinto – acusado de crimes como suposto desvio de mercadorias apreendidas. O ex-delegado nega as acusações e diz ser vítima de perseguição do secretário’.


Não se imagine que os conflitos na Segurança de São Paulo ficam apenas na esfera da luta pelo poder político. Eles envolvem confrontos violentos. No dia 4/3, a Folha publicou reportagem de André Caramante sobre operação para encontrar um fuzil .223 ‘utilizado no assassinato de quatro PMs e dois policiais civis. O fuzil é uma das principais armas usadas por um grupo de extermínio formado por dez ex-policiais militares e civis. De acordo com as investigações, os criminosos cobravam de R$ 30 mil a R$ 50 mil por trabalho’.


Na mesma reportagem, lê-se:







‘O Ministério Público pediu anteontem à Justiça a decretação da prisão preventiva do ex-PM Luiz Roberto Martins Gavião, suspeito de chefiar o grupo de extermínio.
Gavião, segundo os promotores, fugiu de São Paulo ao passar a ser investigado por chefiar o grupo, em 2010.
A prisão foi pedida porque o Gaeco [Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado] disse que ligações telefônicas comprovaram a participação dele na morte do policial civil Douglas Noaldo Yamashita, em Santo André, em abril de 2010.
Apontado pelo Gaeco como executor do grupo, o também ex-PM Jairo Ramos dos Santos confessou a morte de Yamashita dias após o crime, ao ser preso disfarçado num hospital. Ao atirar contra o policial civil, ele foi ferido.
À polícia, Santos confessou a morte de oito pessoas − três policiais civis e até empresários. Ao investigar esses homicídios, o Gaeco descobriu que seis das oito mortes dos quais o grupo é suspeito foram cometidos pelo fuzil .223 não encontrado ontem.
Vahan Kechichian Neto, advogado de Santos, diz que só fala sobre as acusações contra ele à Justiça.
Os dois policiais civis mortos, além de Yamashita, ajudavam a investigar o roubo de 119 armas do CTT (Centro de Treinamento Tático), um centro de treinamento de tiros particular em Ribeirão Pires (Grande SP), em 2009.

LIGAÇÕES
Gavião foi sócio em uma empresa de segurança particular do ex-delegado Paulo Sérgio Óppido Fleury, demitido da polícia paulista em junho de 2010 por irregularidades administrativas.
Fleury, de acordo com o promotor Oliveira, é investigado sob a suspeita de agenciar os crimes do grupo de matadores. Fleury nega participação nas mortes e diz ser ‘vítima de perseguição’.’


Polícia e Estado


Grupos de extermínio em São Paulo e em Goiás (ver Barra-pesada no jornalismo goiano), milícias no Rio de Janeiro e agora, novidade, em Belo Horizonte… Os jornalistas brasileiros que se empenham em denunciar crimes, corrupção e malfeitos das polícias já conseguiram muito material relevante, mas fazem falta análises que mostrem toda a extensão e profundidade do problema. Um coronel (da ativa) da PM-RJ, Antonio Carlos Carballo Blanco, disse em debate promovido pelo Observatório da Imprensa (‘As narrativas da polícia e da mídia se alimentam‘, julho de 2007), ao ser perguntado sobre a razão de sucessivos fracassos da polícia na tentativa de tomar redutos de narcotraficantes:







‘Eu tenho até uma suspeita. Eu acho que parte desse fracasso se deve ao fato de que a PM não é a maior organização criminosa. Talvez seja o Estado. Porque nós estamos falando de um sistema, não estamos falando de uma peça do sistema. E se formos falar de democracia, temos que entender que, de uma forma geral, principalmente nas grandes metrópoles, de 1955 a 1975, a sociedade brasileira passou por um período de transformação talvez jamais visto na história da humanidade. Em vinte anos, o Brasil de característica tipicamente agrária, rural, se transformou numa sociedade de característica urbana, industrial. E nesse período o que nós verificamos é que uma massa significativa de retirantes se deslocou do campo para as grandes cidades em busca de melhores condições de vida. Só que as cidades, por sua vez, não se preocuparam em trabalhar, de um ponto de vista minimamente racional, a ocupação ordenada do solo, em fazer programas que pudessem prover essa população retirante de serviços básicos, essenciais, enfim, planejar e organizar a cidade.


A polícia, hoje e no passado recente, tem trabalhado em cima de efeitos. Quando falamos de democracia e de direitos humanos, o que eu observo é que existem, sim, graves violações de direitos humanos praticadas pela polícia. Mas o Estado também é omisso e permissivo’.


A cobertura é feita dia a dia, fato após fato. Mas a compreensão só pode ser adquirida com um mínimo de aparato metodológico e conhecimento histórico. Assim, a reflexão e o debate, que se nutrem dos fatos, serão capazes de indicar políticas públicas eficazes.