Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Cobertura sem tintas de denúncia

Chama a atenção a cobertura que a Folha de S.Paulo deu à morte da freira ‘missionária norte-americana Dorothy Stang, 73 (…) assassinada ontem com três tiros em uma provável emboscada ocorrida numa estrada de terra de difícil acesso, localizada no município de Anapu, no Pará, próximo de Altamira (a 777 km de Belém)’. Na edição de 14 e 15 de fevereiro, o jornal apresentou uma narrativa com textos, depoimentos e fotos para todos os gostos. E certamente, as últimas encerram as cores do horror que ficaram completamente silenciadas no editorial, ainda por ser escrito pelo jornal, diga-se de passagem.

A primeira cadeia imagética disponibilizada ao leitor é constituída pela fotografia da ‘Cidadã do Pará’, com Dorothy recebendo uma homenagem formal de deputados ao lado de homens engravatados. O sorriso tímido, a cabeça branca e a mão que segurava um documento não esconderam por completo o que estava escrito na camiseta da homenageada: ‘A morte da…’. Essa justaposição soa a crônica de uma morte anunciada e o fim a que é conduzida a voz de quem desafia ‘ordem e hierarquia’ impostas pelos grandes donos de terra no país.

O rosto indefinido, com expressão difusa entre a dor e a delícia, sabia disso. Ao mesmo tempo, há pontuação de que o significante ‘morte’, mostrado em ambiente público e estampado na vestimenta, marcava um lugar de resistência, tão viva e forte nos movimentos de vidas severinadas pela exclusão que só pode se calar a tiro. Resistência tão visceral, que fez a lembrança da premiação voltar a circular de novo; que trouxe o retorno da fotografia creditando mérito à homenageada; que atualizou o prêmio recebido e o transformou em profecia cumprida. Assim, a frase da camiseta continua a denunciar algo que está fora da ordem, a inscrever sentidos de alerta e a protestar contra as várias formas de violência vividas no país. Continua a delatar, mesmo depois de o corpo não caber mais em roupa alguma.

Efeitos de indignação

Vários dizeres de protesto e indignação aparecem materializados na voz de líderes políticos do cenário nacional, manchetes jornalísticas de periódicos internacionais e líderes de ONGs. Autoridades governistas ocuparam o lugar de autoridade, remeteram suas falas à memória da luta pela defesa da floresta e dos trabalhadores, e, por fim, ressignificaram os efeitos de impunidade e violência. Nilmário Miranda, como ministro dos Direitos Humanos, afirmou: ‘É uma agressão à idéia dos direitos humanos de Chico Mendes’; o que aponta um espaço de semelhança entre o crime de hoje e à agressão de ontem. Ao evocar a ‘idéia dos direitos humanos’, o sujeito materializa lingüisticamente que tais direitos são apenas uma idéia, e como tal, elas não passam de simples abstrações teóricas e sem aplicabilidade real.

‘Os direitos humanos de Chico Mendes’, ditos assim, nessas condições de produção, reduzem a dimensão da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesse caso, sem apresentá-los em sua instância internacional (ONU), mas promovendo a diminuição desse discurso à esfera do líder sindical. Ao se apoiar na memória e recortá-la, o sujeito faz a ponte estreita entre direitos e Chico.

Thomaz Bastos, da Justiça, divulgou a seguinte nota: ‘Este tipo de delito, torpe e cruel, revela profundo desrespeito à sociedade democrática e ao estado de direito. É um desafio à convivência civilizada semelhante ao que vitimou Chico Mendes ou à chacina de Unaí. A única resposta que merece é a punição penal, dura, rápida e exemplar, que mostre que estes valores não podem ser infringidos impunemente. Este crime não vai ficar sem castigo.’ O sujeito instala-se em região da memória que alinha três pontos: estado democrático, cumprimento de direitos assegurados e leis a serem cumpridas (que não são locais, nem de Chico, nem de Zé). Efeitos de indignação e repúdio são permeados pela noção de lei, sociedade democrática, direito e estado de direito e, ao enunciar ‘delito’, ‘chacina’, ‘punição penal’, evoca-se o senso de justiça e refuta-se o dragão da impunidade. Nos dois depoimentos, retorna à superfície do discurso jornalístico a memória construída sobre o assassinato do líder Chico Mendes, que também teve o reconhecimento em prêmios recebidos, não suficientes para evitar a brutalidade da execução de que foi vítima.

Mercadoria, agora inerte

A segunda cadeia imagética é mais farta, servida ao gosto do que as corporações têm apresentado como prato principal nas suas edições: cenas da ou que remetem à morte. No site da Folha, a reprodução de uma fotografia de O Estado do Tapajós, em que o corpo de Dorothy aparece atravessado na estrada, deitado meio de lado e visto de costas. O branco da roupa e da pele em contraste com o chão de terra, o toque da mão petrificada ficou de um jeito que parece alisar o chão que ela não viu ser repartido. A metáfora da pedra no meio do caminho, agora eliminada.

Na edição impressa do mesmo dia, na primeira página, uma imagem colorida e de proporção chamativa retrata o caixão entrando num carro escuro, onde está escrito ‘assistênc’ e o leitor supõe o resto do significante. Assistência somente após a morte e o direito póstumo de ser olhada, agora como cadáver, por várias máquinas fotográficas dos órgãos de imprensa e pelo olhar curioso, às vezes cheio de frisson, dos jornalistas sempre ‘intérpretes e analistas da realidade’, principalmente quando o espetáculo da morte comporta raízes de sensacionalismo.

Composição visual que remete ao carregamento de uma mercadoria, agora inerte e tranqüilamente contida, posto que silenciada para sempre. De novo, a terra emoldura o cenário: chão de terra batida e terra grudada nas rodas do carro, colorindo de vergonha a face de um país, em que os conflitos agrários são tratados como caso de polícia e/ou caso de loucura.

Página virada

Também em outra foto se repete a cena do caixão e a espetacularização da morte. No primeiro plano da fotografia, sangue. Do corpo, restaram apenas algumas manchas vermelhas e escuras, empossadas no nada do necrotério. Registro de que vida não há mais; sangue-metáfora recorrente nas religiões como marca sacrificial de uma imolação. O cordeiro morto é oferecido em nome de uma justiça social que não se vê existir no país. No fundo da cena, câmeras fotográficas de prováveis jornalistas, que no exercício da profissão estão empenhados em registrar o melhor ângulo, o detalhe sem precedentes e o enquadramento original. Um jogo de espelhos se processa nessa fotografia: a lente, que documenta a retirada do corpo de Dorothy do necrotério do Hospital de Anapu, também é documentada por aqueles que observam-na do lado oposto, ou seja, dois lados se emparelham, se espelham, se refletem mutuamente. Um dos equipamentos parece fotografar o leitor, colocando-o dentro da cena, vendo-a de perto e de dentro.

Da mesma forma que as máquinas fotográficas olham-se nos olhos, também os relatos jornalísticos o fazem na grande maioria das revistas e jornais impressos, em geral manifestando um apagamento das condições materiais de vida dos sem-terra, dos indígenas, dos povos ribeirinhos e dos expulsos do campo. Olhando fixamente (e somente) o caixão, ‘esquece-se’ de dirigir o zoom para as contradições e limites da vida numa das regiões de maior concentração de terra do país. Fotografar os dois lados dessa cena e sugerir o entrecruzado das imagens corresponde a dar cobertura apenas a um fato e ser espectador de um cortejo funeral. Significa também não falar do que está fora do necrotério e não denunciar, em alto e bom som, a vida de que ‘se morre um pouco por dia’. Melhor ainda, significa negligenciar o poder dos que se movimentam por baixo, dos que cavam frestas de luta no limite da sobrevivência difícil e dos que se sabem seguidores apenas de sua sede de justiça social.

Mapas para a localização de Anapu, dados gerais sobre o município, depoimento de amigos, fotos de época de Chico Mendes, cronologia do fato, manchetes internacionais, pronunciamentos de políticos e entidades, fala do presidente da República, dizeres de líderes do MST e bispos da CPT , grunhidos de figurões da UDR: está lançado o início do falatório. Uma força-tarefa se anuncia com promessas de apuração dos fatos e condenação dos culpados, o que certamente alimentará o burburinho na mídia por alguns dias. Depois, amnésia geral. Para a maioria dos leitores, o nome de Dorothy será apagado da memória, embaçado pela cortina de fumaça das lembranças distantes, tão distantes que parecem nem ter existido. A Folha velha. Uma página virada, que não será mais lida, posto que é matéria crepuscular da narrativa que perdeu seu personagem importante, cuja camiseta continua a escrever: ‘a morte da…’

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Professora-doutora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo