A audiência pública realizada na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara, em 27 de abril, mostrou o alto grau de consenso sobre as inovações trazidas pelo anteprojeto de Lei do Marco Civil da Internet, proposto pelo Ministério da Justiça (MJ). A iniciativa é uma resposta ao Projeto de Lei 84/1999, que prevê punições para algumas condutas cometidas na internet. A expectativa agora fica em torno da tramitação das proposições.
O Ministério da Justiça quer garantir o amplo debate público e o encaminhamento do Projeto de Lei do Marco Civil em junho, antes de qualquer lei que envolva o Código Penal. O deputado Júlio Semeghini (PSDB-SP), relator do PL 84/99, afirma que vai encaminhar seu voto nos próximos dias, acreditando que há complementaridade nas proposições. Já o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) defende um terceiro projeto, que tipifique mais objetivamente os crimes de internet. A idéia é que essas questões sejam debatidas num seminário que será proposto em conjunto pelos dois deputados e a deputada Luiza Erundina (PSB-SP), autora do requerimento de realização da audiência pública.
Para a deputada, a audiência foi fundamental para antecipar o debate junto aos parlamentares e gerar acúmulo para as complexas questões que tratam as duas matérias. ‘Como há polêmica em torno do marco civil e do `marco penal´, é bom colocar os dois temas em debate, mas com tempo para ter um diálogo mais amplo. Se não cimentar a caminhada, o debate pode ser interditado’, alerta. Na avaliação de Paulo Teixeira, o seminário servirá para pactuar a tramitação conjunta de três projetos. ‘Queremos discutir conjuntamente os conteúdos do PL 84/99, do marco civil e de um possível novo projeto sobre os crimes na internet. As coisas precisam caminhar juntas’, defende. Já Semeghini afirmou que o ‘terceiro’ projeto seria um substitutivo que constará em seu relatório. ‘Seguramos o relatório para ter uma visão clara de qual era a abrangência do Marco Civil, de como poderia complementar. Vamos apresentar o voto e encaminhá-lo para debate concreto no seminário’, anuncia.
Proposta colaborativa
Durante a audiência, Felipe de Paula, secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, afirmou que a construção colaborativa do anteprojeto ‘tem trazido uma revolução da regulação normativa no Brasil’. Para a redação da minuta, foram sistematizados mais de 800 comentários feitos sobre as idéias iniciais colocadas pelo MJ. Na segunda fase, que começou em 8 de abril, houve mais de 20 mil acessos e 500 comentários. A participação é incentivada por meio do blog Marco Civil.
O representante do MJ defendeu que ‘a disciplina de um instrumento que é tão fundamental para o país do ponto de vista da educação e da cultura não pode começar pela porta da cadeia’. De acordo com o secretário, o texto reafirma a proteção à liberdade de expressão e da intimidade daqueles que trabalham com a internet.
A forma como a proposta vem sendo construída ganhou destaque no noticiário internacional. O site francês Internet sem Fronteiras (InternetsansFrontières) destaca a experiência brasileira como ‘um quadro exemplar’ e considera ‘extraordinário’ o instrumento jurídico para utilização da internet no país.
O especialista em internet e blogueiro argentino Andres Piazza afirmou estar com certa ‘inveja (saudável) dos irmãos brasileiros pela forma como levam adiante suas políticas na Sociedade da informação’. Ele é autor do blog Internet, Novos Paradigmas, Direitos e Empreendimentos. Veículos alemães e norte-americanos também repercutiram o processo.
O debate na CCTCI contou com especialistas, como Demi Getschko, integrante do Comitê Gestor da Internet no Brasil, e Ronaldo Lemos, do Centro de Tecnologia Social da Fundação Getúlio Vargas, que foi parceira do MJ na construção do procedimento colaborativo. Também participaram Ivo Corrêa, diretor de Políticas Públicas e Relações Governamentais do Google Brasil; Eduardo Parajo, presidente da Associação Brasileira de Internet (Abranet); Fernando Botelho, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG); e Luiz Fernando Gaspar Costa, Procurador Geral da República em São Paulo.
Polêmicas
Três foram os pontos considerados mais polêmicos pelos convidados no anteprojeto: o tempo de guarda dos logs, a responsabilidade das empresas e a retirada de conteúdos potencialmente ofensivos do ar pelo provedor de serviços, sem ordem judicial.
Até agora, o anteprojeto prevê que os logs – o registro de quando um usuário entrou e quando saiu da internet – sejam armazenados pelos provedores por seis meses. Para alguns especialistas, este tempo não é suficiente para uma investigação. Não houve defesa específica de nenhum período para a guarda dos logs, mas o deputado Julio Semeghini acredita que essa é uma questão que será resolvida com dados objetivos e depoimento dos responsáveis por investigações.
Em relação ao temor de que esta guarda poderia significar algum tipo de controle ou violação de privacidade, uma metáfora usada pelo representante do CGI.br, Demi Getschko, esclarece a posição dos especialistas. Ele compara o log a uma placa de carro. De acordo com ele, para o cidadão circular pelas vias, precisa de uma placa, o que na internet seria o equivalente a um número IP (Internet Protocol). ‘Ter o número da placa é bom para saber se você atropelou alguém. Não queremos saber para onde você vai. Só queremos saber que horas você pegou a placa para rodar’.
No caso da internet, a ‘placa’ pode ser dinâmica, como nos casos dos acessos por redes sem fio, em que o IP varia durante o período de acesso. Além disso, há também a possibilidade de mais de uma pessoa usar o mesmo IP. ‘O log não traz em si nenhuma informação específica, mas sim a hora em que a pessoa pegou o IP e a hora que a pessoa deixou o IP’, explica Getschko.
Sobre a questão da responsabilização, o texto em debate retira dos provedores a responsabilidade por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Essa tem sido uma questão que divide os juízes no Brasil. De acordo com Ivo Corrêa, em cerca de 40% das ações que envolvem o Google as decisões consideraram o provedor como responsável direto pelo conteúdo.
O desembargador Fernando Botelho acha que esse deve ser o entendimento. Ele compara os provedores com empresas de táxi, que tem responsabilidade direta caso o motorista cometa alguma infração. Corrêa discorda: ‘Na companhia de táxi, há uma relação de trabalho entre a empresa e o motorista, não é o caso dos provedores’.
Por fim, em relação a retirada de conteúdos do ar, tanto empresas, como especialistas consideram que a melhor solução é não deixar essa prerrogativa para os prestadores de serviço. O texto do anteprojeto deixa para os provedores, após notificação das partes envolvidas, a atribuição de retirar o conteúdo do ar caso alguém entre em contato com a empresa por alguma ofensa. De acordo com a minuta, as empresas podem ser responsabilizadas ‘se forem notificadas pelo ofendido e não tomarem as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro de prazo razoável, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente’.
Na opinião de Demi Getsckho o provedor deve colocar as partes em contato, mas não retirar o conteúdo a priori. ‘O provedor não pode remover o conteúdo antes do contato entre as partes. Se uma das partes não aparece, retira’, defende. Corrêa vai além e defende que o conteúdo só deve ser retirado depois de decisão judicial. ‘O conteúdo corre o risco de ser retirado sem que haja um debate em juízo sobre liberdade de expressão vs. direito à intimidade’, exemplifica.
Lei dispensável?
O desembargador Fernando Botelho afirmou que praticamente todos os artigos do anteprojeto já estão previstos em outras legislações. De acordo com o desembargador mineiro, a parte que interessa está mais bem detalhada no PL 84/99, cujo texto atual, aprovado no Senado, foi formulado pelo senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) com a colaboração de Botelho.
Ronaldo Lemos afirma que o Marco Civil faz uma articulação de normas que estão regulamentadas em outras legislações. O que acontece hoje é a ausência de regras específicas regulamentando a internet no Brasil. Os conflitos são levados ao Judiciário e, na ausência de regras, as decisões são contraditórias. O resultado é uma problemática imprevisibilidade jurídica. ‘Aqui no Brasil, um blogueiro foi condenado a pagar R$ 16 mil por um comentário postado por um terceiro. A responsabilização automática do intermediário vem sendo uma prática no Brasil, ao contrário do que acontece no resto do mundo. Seria muito bom que todos os juízes tivessem o conhecimento legal, mas não é o caso. O Marco Civil traz [isso tudo] de forma compilada e sistematizada’, defende.
Guilherme Almeida, chefe de gabinete da Secretaria de Assuntos Legislativos do MJ e responsável pela organização do processo, defende a importância do Marco Civil. ‘Não é porque um princípio geral existe que ele não possa ser melhor regulado’, ponderou.
Reviravolta
A apresentação do anteprojeto de Lei do Marco Civil da Internet no Brasil merece atenção não só pelas inovações que traz em seu texto e pelos processos de participação que inaugura, mas também por representar uma reviravolta nos debates sobre a regulação da internet que vinham acontecendo no Brasil desde o final da década de 1990.
Em 1999, quando a internet ainda engatinhava no país, o então deputado Luiz Piauhylino (PSDB-PE) apresentou o Projeto de Lei 84, alterando o Código Penal e atribuindo penas severas para ‘crimes de informática’. O debate, porém, ganhou repercussão nacional quando o texto chegou ao Senado, em 2003. O senador Eduardo Azeredo, que assumiu a relatoria do projeto, conseguiu aprovar o seu substitutivo numa improvável atividade legislativa na madrugada de 10 de julho de 2008.
A reação da sociedade foi imediata. Em menos de um mês, mais de 100 mil internautas subscreveram um abaixo assinado ‘Pelo veto ao projeto de cibercrimes – Em defesa da liberdade e do progresso do conhecimento na internet brasileira’. Atualmente, o manifesto conta com mais de 155 mil assinaturas.
O caráter autoritário do projeto era criticado por ativistas, que mobilizaram milhares de pessoas em atos públicos em diversas capitais brasileiras numa campanha chamada Mega Não. O PL Azeredo, como ficou conhecido, logo ganhou o apelido de AI-5 Digital, em referência ao Ato Institucional número 5, editado pela ditadura militar em 1968, que proibiu manifestações e fechou o Congresso Nacional.
As principais críticas recaíam sobre artigos como o 285-B:
‘Obter ou transferir, sem autorização ou em desconformidade com autorização do legítimo titular da rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, protegidos por expressa restrição de acesso, dado ou informação neles disponível’.
Na avaliação de especialistas, com essa redação, poderia ser considerado crime baixar um vídeo, uma música, copiar uma foto, sem a autorização do que seria considerado legítimo titular. O projeto também dava ao provedor a prerrogativa de tirar um conteúdo do ar, em caso de denúncia, e ainda dava brechas para violação à privacidade, obrigando os prestadores de serviços a identificarem todos os internautas e guardarem informações por até três anos.
O texto aprovado no Senado voltou para a Câmara. Na CCTCI, o deputado Julio Semeghini foi escolhido relator. Uma série de audiências públicas foram realizadas e a pressão da sociedade, junto com a argumentação de especialistas sobre os perigos de cerceamento à liberdade na rede, além das violações à intimidade, forçaram o deputado a suspender temporariamente a tramitação até que houvesse um acordo.
O Ministério da Justiça, diretamente interessado na matéria por essa ser uma demanda da Polícia Federal, buscou um diálogo entre a sociedade civil e os parlamentares. Esta interlocução gerou um frutífero debate sobre a necessidade de regular a internet primeiro no âmbito civil, estabelecendo direitos, deveres e responsabilidades, antes de uma lei que criminalizasse usuários e prestadores de serviço.