Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As novas lutas de independência

O ano de 2010 marca o início das comemorações dos bicentenários da independência na América Latina. A Venezuela foi a primeira a celebrar, em 19 de abril, os duzentos anos de ruptura dos laços coloniais. Em maio é a vez da Argentina e as celebrações se prolongarão por todo o continente pelos próximos 20 anos. Um largo período de festividades que retratam um prolongado e indefinido processo de lutas emancipatórias que não se esgotaram no passado.

Mais contemporânea, a defesa da democratização dos meios de comunicação se anuncia como a nova batalha da independência dos povos latino-americanos das amarras das antigas elites dominantes.

Se no período colonial, a manipulação e o controle se faziam pela cruz e pela espada, agora se refletem no domínio político e econômico de uma elite sobre as indústrias culturais. Um processo que foi intensificado com as políticas neoliberais de privatização do setor, cujo resultado é uma concentração mediática em que os quatro principais grupos de comunicação latino-americanos (Globo, no Brasil, Clarín, na Argentina, Cisneros, na Venezuela, e Televisa, no México) controlam mais de 60% do mercado regional de audiências.

Debate toma ruas e tribunais argentinos

Mas as respostas a esse cenário já apontam a possibilidades de novas configurações. Dos pioneiros Venezuela e Argentina surgem alguns dos principais embates da ‘descolonização midiática’.

Em 14 de abril deste ano, 50 mil pessoas, entre militantes e ativistas do direito à comunicação, profissionais da imprensa, políticos e cidadãos comuns, tomaram as ruas de Buenos Aires para defender a Lei de Comunicação e Serviços Audiovisuais. Aprovada pelo Senado em outubro do ano passado, a lei 26.522/09 está paralisada por duas liminares judiciais. A pressão é para que a Suprema Corte de Justiça intervenha de maneira favorável à nova legislação.

Construída com base nas propostas da sociedade civil organizada na Coalizão para uma Nova Lei de Meios, o novo marco rompe com a herança regulatória da ditadura no país e quebra o quase monopólio midiático do Clarín, detentor da maior concentração nacional.

As lutas pela independência do controle corporativo da comunicação extrapolaram as batalhas econômicas e políticas, para invadir as ruas e os tribunais argentinos. No centro do debate estão os anseios por ampliar as fronteiras da democracia em dois setores ainda bastante blindados: a mídia e o Judiciário.

Possibilidades de enfrentamento e libertação

Na mesma semana da marcha argentina, a sede da televisora comunitária de Cátia TV, na periferia de Caracas, foi palco do ‘Encontro Internacional da Comunicação Popular na Batalha Anti-imperialista’. O evento reuniu emissoras comunitárias de todo o continente na tentativa de organizar um movimento regional para enfrentamento dos grupos econômicos midiáticos.

Assim como para os argentinos, o desafio desse grupo é grande. Associados historicamente à construção de alternativas progressistas de comunicação, esses atores agora se situam no meio do fogo cruzado entre as trincheiras do modelo privado de dominação comunicativa e o controle informativo estatal.

Nesse cenário, os meios comunitários passam por um momento de redefinição importante. Frente ao poder ostensivo do capital, as alianças com os governos são condição essencial para qualquer perspectiva de alteração das estruturas midiáticas. Do outro lado, as chamadas ‘novas esquerdas’ muito cedo descobriram que sem a legitimação de uma sociedade civil não conseguem as condições necessárias nas regras democráticas para enfrentar a oposição mediática a seus governos. Desses novos acordos em construção surgem as possibilidades de enfrentamento e libertação da colonização midiática.

Atenção, cuidado e perseverança redobrados

A questão é que nesses vínculos está presente o eterno risco que atormentou os antigos processos de independência: mudar para continuar o mesmo. Na maioria das antigas colônias, o processo de libertação das metrópoles não significou mudanças na exploração e domínio da maioria da população. Na prática, os ‘libertadores nacionais’ se armaram dos mesmos chicotes que mantiveram a exclusão de indígenas, negros, mulheres e trabalhadores e que se perpetuam ainda hoje.

Para uma independência autêntica, o que se exige cada vez mais é um urgente retorno aos antigos princípios por um fazer comunicação plural, inclusiva e democrática. Essa é a bandeira a ser continuamente empunhada nesse campo de batalha que está apenas começando.

Nessa nova conjuntura, o Brasil será um dos últimos a celebrar o bicentenário da independência, pois só participa das festas em 2022. E se depender do nosso histórico ‘Grito do Ipiranga’, as lutas por uma comunicação mais livre e democrática no país vão exigir atenção, cuidado e perseverança ainda mais redobrados.

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Doutoranda em Ciência Política pela Flacso-México e membro do Grupo de Pesquisa Cepos