Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Orgasmo e corrupção

Vou seguir o exemplo de Moacyr Scliar e escrever sobre orgasmo. Nesses dias, os jornais só falam de corrupção. Quando chega o fim de semana que, segundo os dicionários, é o tempo decorrido entre a noite de sexta-feira e a manhã de segunda, mas sobre isso há também muita controvérsia, vêm as revistas semanais, e qual é o assunto solar de todas? A corrupção.

Daí que, atravessando o imenso areal da Folha de S.Paulo, o jornal preferido pelo deputado Roberto Jefferson para soltar suas bombas certeiras, de repente me vi num oásis: um texto do escritor Moacyr Scliar, meu querido amigo do Brasil meridional, sobre o orgasmo.

Somos os dois cúmplices de um fracasso antigo. Pais únicos – ele, de um menino; eu, de uma menina – nos primeiros anos de nossos rebentos planejamos o casamento de nossos filhos como se tratássemos de matrimônio de príncipes. É claro que os filhos, ao crescerem, nem tomaram conhecimento do plano dos pais.

Filho único, aliás, como cabeça de bacalhau, negro gêmeo, enterro de anão, ex-veado e outras singularidades, não existe! Vocês, leitores, já viram algumas dessas ditas realidades? Nem filho ou filha única. O que existe é pai único, mãe única. Como disse o lingüista Ferdinand Saussure, ‘o ponto de vista cria o objeto’. Por falar em citações, um professor de Direito, na USP, debochava do exagero de tais invocações e, ao entrar na sala de aula, sua saudação aos alunos era esta: ‘Como dizia Rui Barbosa, bom dia a todos!’.

Marido parceiro

Moacyr Scliar escreve tal coluna baseado em matérias publicadas no jornal. E desta vez ancorou seu artigo na descoberta de pesquisadores holandeses que, por meio de tomografia computadorizada, descobriram que quando elas fingem orgasmo, as áreas do cérebro ligadas a emoções permanecem ligadas. No orgasmo verdadeiro, as mesmas regiões são desligadas.

Deu o título de ‘Falso. Verdadeiro. Falso. Verdadeiro’. Pelo título, achei que fosse escrever sobre vestibular, mas o assunto da matéria era o orgasmo feminino. Bem se vê que nem todos os que dão título nos jornais têm a capacidade de síntese daquele jornalista cujo feito glorioso o Maurício Menezes, num show imperdível que vi no Teatro dos Grandes Atores, no Rio, contou com verve e graça no seu divertido Plantão de Notícias.

Encarregado de dar título a uma reportagem em que um insensato, adepto do sexo bizarro, tinha invadido uma propriedade rural e transado com vários animais e aves, mas poupara o canário, não teve dúvida e lascou na manchete: ‘Só faltou o canário’. Escrevo de memória e não sei se não era ‘Só sobrou o canário’. Seria maravilhoso por incrustar a ambigüidade fônica: ‘só sobrou’, ‘soçobrou’.

O orgasmo – verdadeiro, claro – deveria ser item de programa partidário. Seria bom se lêssemos, em algum parágrafo de programas onde o candidato promete tanta coisa que não vai fazer, a frase certeira: ‘Em meu governo haverá orgasmo para todos’.

Se bem que, como os governos falam uma língua, e o povo outra, alguém poderia ter do orgasmo o conceito que aquela mulher revelou quando numa consulta o médico lhe perguntou, com o fim de aprimorar o diagnóstico: ‘A senhora tem orgasmo?’. E ela, sendo daquelas mulheres que nada fazem sem a parceria do marido, muito menos orgasmo, palavra que ela desconhecia, socorreu-se do cônjuge, que a acompanhava na visita ao médico, mas ficara lendo jornal na ante-sala: ‘Bem, nós temos orgasmo?’. E o consorte, entendendo que se tratava de novo plano de saúde: ‘Não, o nosso é Unimed’.

Corrupção e a pizza

A língua é essencial ao orgasmo. As palavras também. E as mãos também, porque não é apenas com palavras que acariciamos. Outro dia um colega, ao receber cafezinho num copinho de papel, reclamou: ‘Queimando a língua e os dedos, lá se vai 75% de minha capacidade sexual’.

Pois é, mas a palavra orgasmo chegou ao francês escrito em 1611. E ao português, em 1707, num texto médico de João Curvo Semedo: Observações médicas doutrinais de cem casos gravíssimos.

Os gregos, que nos deram o primeiro ‘orgasmós’, eram mais livres e soltos. Theophrastos achava que até as plantas tinham orgasmo, que antecedia flores, brotos, gomos e frutos.

Durante séculos o orgasmo foi apenas um caso médico até que retomassem Teresa d’Ávila, que viveu no século de ouro, o XVI. Esta, sim, entendia de orgasmo, como prova a estátua de Bernini, Êxtase de Santa Teresa. E, modéstia à parte, o meu romance Teresa, que liga sua vida à de uns meninos catarinautas cujas mães tiveram vocação para eles serem padres.

Em vez disso, um deles está aqui escrevendo sobre orgasmo, depois de receber de outro, por correio, uma cesta básica para a sexta básica: por sedex, José de Souza Patrício, um daqueles antigos meninos, me mandou seu mensalão. Tinha que ser pelo correio! Em pleno sábado, coordenando evento com centenas de professores na Estácio de Sá, no Rio, fui chamado para receber uma caixa com pizzas, massas e outros quitutes que o próprio ex-futuro padre fabrica. Como a corrupção ameaça acabar em pizza, o Patrício antecipou-se! E o correio, tão mal na berlinda, que injustiça: mais uma vez não falhou! Era sedex 10 e eu recebi às nove horas.

Verbo fingir

Ninguém chegou cheio de nove horas para dar desculpas esfarrapadas, como estão fazendo nas CPIs. E como as mulheres que fingem orgasmos, fazem também. Mas essas têm previamente o meu perdão: alguma coisa os homens fizeram ou deixaram de fazer para que elas precisassem mentir.

Vários autores já aludiram à volúpia do poder. O mal é que seus ocupantes não raro só querem o orgasmo deles e nem pensam se estamos consentindo com os atos que contra nós praticam, designado por um verbo que não fica bem explicitar aqui. E ainda querem que finjamos! Caraca! Que tempo, que modo, que pessoa! O verbo fingir é de difícil conjugação! Que o digam os depoentes das CPIs.

[Versão resumida deste artigo foi publicada em 05/07/05 no Jornal do Brasil]