O escritor Josué Montello (1917-2004), na crônica ‘Memórias’, diz que há duas maneiras de puxar pela mesma. Numa, começa-se a convocar as lembranças com estas palavras introdutórias: ‘Por esse tempo…’. Na outra, principia-se em tom mais evocativo assim: ‘No meu tempo…’
Não desmereço de uma e menos da outra colocação. É preciso atentar para o que diz a escritora e ativista Susan Sontag (1917-2006) a respeito. ‘(…) O passado é um continente imenso, o presente um fio de navalha, e o futuro, o menos que se pode dizer dele é que é duvidoso. A grande realidade, pois, é o passado, como acrescenta a sabedoria popular, por ser algo que não passou, ou seja, aquilo que ficou.’
Não fugirei à regra, começarei pelo ontem, sem essa de ‘No meu tempo’ ou ‘Por esse tempo’.
Prefiro me afogar nas águas do continente de Sontag, daí puxar pela memória e apelar para um recurso que imagino ter coerência. A uma coisa não se deve renunciar, à lembrança, e confesso: não dá para esquecer a sacada ampla, de piso de mármore e grade de ferro, da Rua Formosa, 46. Fixo o meu olhar nesse prédio de rara beleza, quando lá funcionou, o jornal O Imparcial por muitas décadas e também abrigou o vespertino Pacotilha – O Globo e a Rádio Gurupi, todos da ‘Cadeia Associada’.
Comando dinâmico e certeiro
Nesses veículos de comunicação, dei os primeiros passos para uma aprendizagem que permaneceu para sempre e, desse modo, me transformei num profissional e os servi, anos depois, com a experiência adquirida. A fascinante descoberta sobre o que desejava ser ajudou-me a alcançar novas conquistas e seguir em frente, na busca de uma realização. Foi preciso entregar-me com dedicação e empenho, absorver conhecimentos, leituras, observar e ouvir conselhos dos jornalistas calejados.
Sabedor da passagem pelas redações daqueles órgãos de informação de um grande contingente de repórteres que se constituíram na formação de uma elite privilegiada na sociedade local, que merecidamente tornou-se famosa e respeitada, não passava de uma motivação a mais. Por lá trabalharam futuros governador do Maranhão, presidente da República, desembargadores, membros da AML, juízes de Direito, promotores de Justiça, membros do Superior Tribunal de Justiça, Superior Tribunal Federal, advogados famosos, professores universitários reverenciados, jornalistas que ultrapassaram a nossa fronteira, escritores de nome internacional, roteiristas de cinema conhecidos no exterior etc.
O Imparcial continua a manter a tradição sob o comando dinâmico e certeiro dos jornalistas Pedro Freire (diretor geral) e Raimundo Borges (diretor de redação) ao prosseguirem com a oficina de lapidar talentos, transformar o jornal para circular sintonizado com a era da informática e enfrentar a crise econômica que se abateu, principalmente em 2008, dando grandes prejuízos ao setor e que abalou a estrutura forte de jornais europeus e dos EUA, com dezenas encerrando as atividades, enquanto outros pedem falência. O Brasil sofreu com o problema, mas não a ponto de se desencadear fechamentos e pedidos de concordata nas grandes empresas.
Caniço e anzol, no lugar do peixe
Com a recuperação da economia, a turbulência e os problemas vão se afastando. Lamentavelmente, pela perda da tiragem, migração da publicidade e o aparecimento de novos meios de comunicação, os jornais precisam reinventar-se, a cada dia, para assegurar o lugar merecido na história. Quanto aos que falam no fim das folhas impressas, não passa de profecias bizarras que não se devem levar em consideração.
Aquela sacada de ferro, com histórias a contar, não dá para esquecer e menos a máquina de produzir notícias, que fez do periódico um dos mais respeitáveis do estado. E daquele janelão eu me debruçava sobre os adornos para olhar as pessoas que pegavam o ônibus, linha Monte Castelo, com fila na calçada, onde se achava instalada a casa comercial ‘Ferro de Engomar’, no centro da cidade.
Passavam os transeuntes, uns apressados, gente humilde, endinheirada, mendigos e moças bonitas. Adiante, quase vizinho à ‘Casa Mohana’ abelhudava, nesta direção, na esperança de ver o padre e grande escritor maranhense, conhecido em todo o Brasil e exterior, João Mohana, sempre portando um guarda-chuva e uma bolsa preta, sair à rua, para missões religiosas. Certa vez o procurei para me orientar sobre a arte e a técnica de redigir. Bondosamente e com inteligência, seguindo o exemplo do ditado chinês que diz ser recomendável dar ao pescador o caniço e o anzol, no lugar do peixe, ele me ofereceu o livro Introdução ao jornalismo, de F. Fraser Bond, segunda edição, de 1962 e me recomendou lê-lo, o que faço ainda hoje, eventualmente, pela atualidade. O livro me ensinou o que é jornal e jornalismo, sob os diversos aspectos.
Os grandes panfletários
Ficava contemplativo, do janelão, tentando descobrir o que faziam aquelas pessoas, de onde vinham e para onde iam. Queria saber das reclamações da vida, o que esperavam do amanhã e como foi o ontem ou o que pensavam das autoridades públicas e o que delas esperavam. Tinha na cabeça uma pauta e uma preocupação com os marginalizados da sociedade. Enriqueceria a mesma se nesses momentos o chefe da empresa Pires Sabóia ou o chefe de redação, Emanoel da Silva, não me despertassem para a realidade e me mandassem cobrir os fatos policiais, que lugar de repórter é na rua.
Meninos, eu vi e convivi com o jornal a quente, aliás, composta as letras nas linhas de chumbo derretido, pela linotipo ou à mão, e paginado pelos operários, exatamente, para o uso dos títulos e algumas matérias, tal e qual nos tempos de Gutenberg, com os tipos móveis; ouvi o tilintar de batidas altas das jurássicas máquinas de escrever, que muitos, ao reagirem ao progresso, se submetiam ao lápis ou à caneta Bic.
Vi a impressão pelas pesadas e quebradiças impressoras, cuja zoada abalava o local onde funcionava a oficina, e ficava o tirador de provas, que as entregavam ao revisor (eu fui um deles); assisti a várias sessões da confecção do clichê, que exigia como matéria-prima produtos químicos, zinco, um serrote e madeira. Computador só na década de 80 do último século. Tudo mudou para melhor com a chegada das novas tecnologias.
Os jornais da década de 1950, início de 60, quando não havia TV, só rádio, tinham uma circulação maior que nos dias de hoje em todo o país, a levar em consideração o número de habitantes e alfabetizados, o evoluir da educação, a melhoria do poder aquisitivo. Com os debates entre os grandes panfletários, como um Erasmo Dias, Amaral Raposo, Walbert Pinheiro, Neiva Moreira, Amorim Parga e outros, o jornal era aguardado como quem espera o próximo capítulo da novela.
A sacada de ferro, não dá para esquecer
Pacotilha – O Globo, explorando notícias policiais, atraía um grande número de leitores e a empresa se via obrigada a tirar uma segunda edição. Para mexer e despertar a atenção do público o jornal colocava, do lado de fora, com um fio amarrado na janela, cartazes com os títulos chamativos, o que aglomerava um bom número de curiosos. Fazia o mesmo em outro lugar próximo. Eram colocados cavaletes na Praça João Lisboa, ao lado do antigo Banco Econômico.
Havia uma cigarra eletrônica, ouvida a quilômetros, que com apito estridente anunciava notícias de impacto. Os jornaleiros gritavam as manchetes, com criatividade pelo centro e bairros da cidade, o que aumentava o interesse pelas notícias: ‘Leia o crime do Batatã: amante mata mulher casada’. Formavam-se filas na porta do jornal esperando pela distribuição do vespertino.
O marketing e a prática do jornalismo mudaram muito. Pelo menos nos bons jornais há respeito pela ética e a verdade, princípios indispensáveis para o aperfeiçoamento da democracia. Aquela sacada de ferro não dá mesmo para esquecer, ainda mais quando O Imparcial chega aos 84 anos (1º de maio) de funcionamento, com saúde financeira saudável e funcionando ao longo desse tempo, sem interrupção e depredação, fato raro na história da imprensa brasileira.
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Jornalista, escritor e professor emérito da Universidade Federal do Maranhão (Ufma)