Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um país de faz-de-conta

Uma sociedade que se move numa realidade forjada é uma sociedade fictícia, como o próprio cenário em que se apresenta aos olhos do mundo. Um olhar mais apurado, de quem está de fora, ou mesmo de algum ator consciente dessa encenação, revela a farsa. É o que está acontecendo, neste momento, com a sociedade brasileira. Diante da apresentação de canastrão do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) perante seus pares do Congresso Nacional, na tosca tentativa de jogar para segundo plano o fato de ter sido pego com a ‘boca na botija’, no comando de uma quadrilha de larápios infiltrada nos Correios, o olhar agudo de alguns atores sociais e da platéia externa expôs a fantasia que representamos como nação.

O Brasil, de fato, não parece um país real. Esta porção tropical do planeta, desde a época das grandes navegações, apresenta-se envolta em bruma tênue, uma luz que lhe confere ares de ‘terra mágica’, de ‘lugar inexistente’, de ‘reino distante’ dos contos de fadas, em fim, um verdadeiro país de ‘faz de conta’. E nem mesmo 505 anos de atribulada história parece ter sido capaz de colocar a Terra Brasilis na esfera da realidade concreta.

Privilegiado o burlesco

A nossa imprensa, por sua vez, tem colaborado para a perpetuação dessa encenação fantástica. Nossa mídia, como agente de representação do modus vivendi do povo, perde-se ao registrar, sem uma crítica substancial e consciente, a atuação da companhia no show ‘Brasil’. Não se pode negar que o espetáculo, enquanto show, é grandioso, pretensioso e bem elaborado, além de ter todos os ingredientes de um blockbuster: drama, comédia, tragédia, suspense, romance e, claro, doses generosas de surrealismo e realidade fantástica, recursos estilísticos que são característicos dos melhores romancistas sul-americanos. Não surpreende, portanto, que a imprensa compactue com os produtores e diretores que ora comandam a encenação a partir de Brasília.

O fato de a imprensa estar aliada aos que preferem a representação fantasiosa de país à construção de uma nação real, apegada a leis e princípios objetivos de convivência social, de organização e inter-relação econômica, cultural e política, implica, necessariamente, uma urgente reação daqueles que já se aperceberam de que esse mergulho na fantasia está levando o Brasil a um estado de existência relativa, a uma alienação cada vez mais profunda da realidade objetiva.

Na ânsia de conferir dramaticidade e atratividade a cada cena dos atores políticos, a imprensa tem privilegiado o imaginário, o burlesco, o pitoresco, o histriônico, o picaresco, quando o que se espera dela é que se esmere na apresentação daquilo que mais se aproxime da verdade, da realidade objetiva, da concretude dos fatos e acontecimentos. Elementos, estes sim, absolutamente indispensáveis para que a sociedade possa saber e compreender, de fato, o que se passa fora do alcance de suas vistas, mas, que lhe afeta o cotidiano imediato com graves conseqüências também para seu futuro.

Ator e platéia

Não resta dúvida de que a imprensa está cada vez mais distante de sua finalidade precípua de oferecer ao público informações fidedignas, confiáveis, robustas em forma e conteúdo, lastreadas na verdade e na realidade objetiva. Como nos lembra Ricardo Noblat, a cobertura jornalística tem optado pela ‘espetacularização’ dos fatos e acontecimentos a fim de atender o interesse do público, esquecendo-se de que isso, quase nunca, corresponde ao interesse público. E o caso do deputado Roberto Jefferson é emblemático.

A imprensa tem dado ao parlamentar petebista o status de testemunha, quando deveria interpretá-lo como o que de verdade ele é: réu confesso de crimes como corrupção passiva e formação de quadrilha. O discurso teatral do deputado, no entanto, vale mais, para a imprensa, que o fato objetivo de que ele comandava, sim, uma quadrilha especializada em sangrar recursos públicos em todos os órgãos governamentais em que pôde se infiltrar. Ou seja, nossa imprensa tem privilegiado a definição de notícia dada em tom de farsa pelo jornalista americano Charles Dana, aquela que diz que ‘se um cachorro morde uma pessoa, não é notícia, mas, se alguém morde um cachorro, isso é notícia’, quando deveria estar atenta ao que nos ensinam os professores de Jornalismo e pesquisadores da comunicação. Como Nilson Lage, que nos oferece a clássica definição de que notícia é o registro de um acontecimento a partir da ação que o deflagrou hierarquizando as informações pela sua importância para a compreensão do fato; ou Nelson Traquina, que nos mostra que o jornalista é um agente ativo da sociedade, cuja função é dar-lhe conta do que a realidade produz além de seu meio cotidiano e que possa interferir na organização deste mesmo meio, instrumentalizando o cidadão com informações consistentes e confiáveis a fim de permitir-lhe, objetivamente, conhecer e interpretar a realidade em que está inserido.

Enquanto o jornalismo brasileiro pautar-se pela teatralidade que cada ação humana eventualmente encerra, seguiremos vivendo num país em que o rei será um eterno alienado, cercado por uma corte de bajuladores e aproveitadores, e o povo permanentemente seduzido pela ilusão de ser, ao mesmo tempo, ator e platéia nesse espetáculo do absurdo.

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Jornalista, pós-graduando em Comunicação e Marketing, presidente do Sindjor-MT