O artigo 223 da Constituição de 1988 reza:
‘Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, publico e estatal’.
O que o princípio da complementaridade pretendia era direcionar as novas outorgas e as renovações de concessões de radiodifusão no sentido do equilíbrio entre os sistemas privado, publico e estatal. Acreditava o constituinte ser esta uma das maneiras de garantir a democratização do setor.
Em depoimento na Subcomissão de Rádio e Televisão da Comissão de Educação do Senado Federal, em setembro de 1999, assim se expressou o Relator do tema na Constituinte, o então deputado federal Artur da Távola, hoje, infelizmente, já falecido:
‘Durante a Constituinte, toda a disputa se estabeleceu em tomo do Conselho (de Comunicação Social). (…) Eu era o Relator da matéria e considerava que o mais importante era algo que significasse a democratização na outorga dos canais. (…) E eu defendia a tese de haver um equilíbrio na concessão. Parecia-me que, havendo um equilíbrio na concessão, se alcançaria o pressuposto da democratização nos meios de informação’ (disponível aqui).
O artigo 223, como se sabe, nunca foi regulamentado pelo Congresso Nacional. E até a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), pelo decreto nº 6.246 e a MP 398, ambos de outubro de 2007 (depois convertidos na lei nº 11.652, de 7 de abril de 2008), não tínhamos sequer uma positivação do que seria um sistema público de radiodifusão. A partir daí, passou a ser possível pensar-se na implementação do princípio constitucional da complementaridade na radiodifusão.
A Rede Nacional de Comunicação Pública
O inciso III do artigo 8º da lei nº 11.652 reza que compete à EBC:
III – estabelecer cooperação e colaboração com entidades públicas ou privadas que explorem serviços de comunicação ou radiodifusão pública, mediante convênios ou outros ajustes, com vistas na formação da Rede Nacional de Comunicação Pública.
No dia 3 de maio de 2010, um ano e meio depois de sua criação, a EBC consegue cumprir o que manda a lei: foi iniciada a transmissão simultânea da Rede Nacional de Comunicação Pública (RNCP).
Formada pelos quatro canais próprios da EBC, por sete emissoras universitárias e por 15 emissoras públicas estaduais, a RNCP levará a programação da TV Brasil para cerca de 100 milhões de brasileiros, de 23 estados. Como algumas das parceiras dispõem de redes particulares, constituídas por geradoras afiliadas e retransmissoras próprias, esse número de canais pode chegar a 765 já que a TV Brasil pode ser vista tanto pelos canais de TV aberta quanto pela TV por assinatura e pela banda C das antenas parabólicas.
Vinculadas a governos de estados, universidades federais e estaduais, essas emissoras, acrescidas da TV Brasil, representam mais de 95% do poder de cobertura do campo público, que inclui canais fechados universitários e comunitários, emissoras institucionais e televisões educativas locais.
Sonho e esperança
O início de funcionamento da RNCP é auspicioso por ele mesmo. É necessário, no entanto, registrar que sua entrada em operação obedece às verdadeiras intenções dos constituintes expressas no princípio da complementaridade (artigo 223) e significa o cumprimento dos princípios que constam do artigo 221 para ‘a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão’ que, também, nunca foram regulamentados.
Como está escrito na própria nota distribuída pela EBC, ‘ao contrário das redes comerciais, as relações entre os integrantes da Rede Pública se processam de forma horizontal, as diferenças constituem um valor e a regionalização dos conteúdos é um pressuposto.’ Além disso, pratica-se ‘o estimulo à produção local, inclusive para veiculação na grade nacional, com a EBC fazendo aporte de recursos.’
Todos aqueles que acalentam o sonho – e a esperança – de que, um dia, possa afinal haver equilíbrio entre os sistemas privado, publico e estatal de radiodifusão e de que um sistema público constitua, de fato, alternativa de qualidade ao sistema privado comercial, dominante entre nós desde sempre, devem saudar a RNCP como um passo certo nesta direção.
Parece que – a exemplo do que já ocorre em vários países – um sistema público de radiodifusão, apesar de todas as questões ainda a serem equacionadas, começa a se transformar em realidade no Brasil.
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Professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher,2010 (no prelo)