Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A mídia bipolar ou ‘teles-jornalismo’

Bem numa época em que pluralidade (vocábulo que consta do nec plus ultra da Folha de S.Paulo) passou a significar nonsense, caleidoscopia, jogo de espelhos quebrados ou mesmo aquilo a que Max Weber chamou de zinnerlust (desencanto), eis que a imprensa brasileira volta aos velhos tempos e nos reconduz ao antigo mundo bipolar.

Não será a repassada divisão entre capitalistas selvagens e comunas desbundados: nossa mídia era dividida entre os inimigos de Daniel Dantas e os amigos da Telecom Italia. Como, agora, Dantas e os italianos viraram amigos, o desvão, que o leitor desconhece, está entre os amiguinhos de Dantas e os amiguinhos do ministro Luiz Gushiken. A mídia bipolar é pautada unicamente por esse núcleo duro. A que são acrescentados, semana a semana, novos rótulos e intrigantes atores fazendo pontas no espetáculo. A situação permanece substantiva, ainda que sujeita a variações adjetivas.

Por exemplo: a revista CartaCapital, na abertura de uma de suas muitas reportagens sobre a maior guerra de negócios da qual o Brasil já foi palco, insinua que certa vez duas equipes da Polícia Federal por pouco não trocam tiros em um hotel. O texto não diz com clareza, mas leva a crer que uma equipe policial estava a soldo da Telecom Italia e outra, a serviço de Daniel Dantas.

Semana passada, a mesma CartaCapital emprestou mais uma capa em uma série de tantas destinadas a fulminar Daniel Dantas. Na edição, o texto principal se destinou a atacar a Editora Três, da IstoÉ, que ficou no ‘pólo oposto’: do lado de Daniel Dantas.

Olhos puxados

Essa bipolaridade vai mais longe. Mas uma coisa é certa: se o affair terminasse hoje, o derrotado – ao menos na guerra da comunicação – seria o dono do Opportunity. Na opinião de um ministro de alta Corte situada em Brasília, não foi para os adversários ‘usarem da má fama de Dantas para debitar em sua conta umas tantas falcatruas’.

A observação faz sentido quando se vê que a Kroll, que o próprio governo e metade do Brasil rico contratou, só virou criminosa depois que Dantas a contratou. O advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, queridinho da imprensa e íntimo de José Dirceu que todo mundo contratou, só virou ‘lobista’ e alvo depois que Dantas o contratou.

É evidente que Dantas usou seu respeitável poder econômico para comprar indulgências a torto e a direito. Seus muitos e infinitos adversários não deixaram por menos. Coisas da iniciativa privada. Mas o desequilíbrio começa quando o governo resolveu, como juiz do jogo, chutar para um dos lados. O próprio nome da operação de caça-Dantas revelava isso. Foi a primeira vez que a PF batizou uma de suas operações com o nome de alguém e não de uma coisa ou bicho: ‘Chacal’. Até o som tem os olhos puxados. Por pouco não se diz que o empresário encrenqueiro tinha em seu banco armas químicas de destruição em massa.

Alimento da briga

O perfil de Dantas, a quem se atribui crueldades e a mania repulsiva de grampear adversários, tem em sua conta um monturo de ações reprováveis, como a de grampear o jornalista Ricardo Boechat falando mal de seu patrão e tornar a fita pública. Mas do outro lado do ringue, quem se encontra? Os empresários Nelson Tanure, Luís Roberto Demarco e Naji Nahas. Personalidades que não enriqueceriam vendendo carros usados.

Ano passado, na segunda semana de setembro, a revista Veja soltou pela primeira vez uma história que já corroia, como zinabre, as bordas de algumas redações: a existência de uma tal Operação Gutenberg, destinada supostamente a punir exemplarmente (na época ainda o PT acreditava no Conselho Federal de Jornalismo) jornalistas que venderiam reportagens para não publicá-las.

Dois meses e mais quatro notinhas depois, Veja surge com uma capa intitulada ‘Os Intocáveis’ – em que, quase genuflexamente, era o recado, pedia-se na entrelinhas que a PF invadisse redações como ora faz com escritórios de advocacia.

O delegado da Operação Gutenberg é o policial federal Elzio Vicente da Silva. O juiz, Luiz Renato Pacheco Chaves de Oliveira, de São Paulo. A procuradora, Anamaria Osório Silva de Sordi, do Ministério Público Federal em São Paulo.

O delegado é grave e hierático. Sem delongas, escreveu: ‘Percebe-se o interesse, por parte das organizações criminosas detentoras de poder econômico, de ter a mídia ao seu lado’. O juiz foi presciente e claro: ‘Revela-se um tanto exagerada a afirmação de que a utilização de reportagens constitui forma de participação na organização criminosa’. O mesmo juiz disse não ao MPF, que pleiteava quebra dos sigilos do jornalista Leonardo Attuch, da IstoÉ Dinheiro.

Se algo houvesse contra Attuch, do tanto que foi esquadrinhado, já teria sido punido não pela fúria legiferante de algum juiz, mas pela pena da galhofa, a tinta da melancolia, as rabugens de pessimismo e as lentes de alguma revista concorrente ou de alguma TV que ama o histrionismo hollywoodiano das ações da PF.

Mesmo tomando tantos tiros, Attuch está incólume e imaculado como o ventre de Nossa Senhora. Teve fôlego para ter trazido com exclusividade a entrevista com Fernanda Karina, ex-secretária do publicitário Marcos Valério. Tanto bastou para que a concorrência, desta vez a CartaCapital, trouxesse uma suposta troca de e-mails entre Attuch e Dantas, encomendando a porrada no governo. Quem alimenta Veja e CartaCapital nessa briga é o desafeto e tele-litigante de Dantas, Luís Roberto Demarco, fundador da lojinha virtual do PT.

Caldo de cultura

O que o populacho não sabe é que, nesse lusco-fusco de grandes publicações, grandes porradas numa das partes são sempre acompanhadas de grandes anúncios de telefonia interessada no melánge. A guerra das teles, iniciada quando da privatização do sistema Telebrás sob FHC, é a mãe-espiritual de toda e qualquer reportagem que se propõe ‘moralizadora’ nos dias que correm.

A guerra das fitas sob FHC (batizada por Alberto Dines de ‘jornalismo fiteiro’) prossegue na mesma toada sob Lula. Quem comanda os interesses de pauta, nesse caso, são as teles. A mídia impressa vive seu período de ‘teles-jornalismo’. Por isso nosso jornalismo virou bipolar. Mas o leitor ainda não acordou para isso. Ainda.

É mais fácil encontrar quem comente as brigas de Daniel Dantas que as encrencas de Domingo Alzugaray, dono da Editora Três, o empresário que, só neste ano, já saiu no braço com a Folha de S.Paulo, UOL e com a revista Veja.

Ao caldo de cultura criado, acrescente-se mais um: ‘O mercado não iria perdoar a concorrência desleal de quem passa a vender a granel o que se costuma vender picado’, diz Márcio Chaer, editor-chefe da revista eletrônica Consultor Jurídico – ressalvando que a expressão ‘venda’ não se refere, necessariamente, a transações que envolvam dinheiro.

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Jornalista