O Negro Mama é um personagem de TV muito conhecido pelo público peruano que assiste aos programas de humor nos fins de semana. Apresenta-se como um negro de rosto pintado e feições exageradas pela maquiagem, com roupas sujas e fala quase balbuciada, e costuma dizer ‘serei neguinho, mas tenho meu cerebrinho’ toda vez que o desafiam em público.
Nas paródias em que aparece acontecem sempre as mesmas situações: é olhado com desconfiança, desperta a suspeita de furto e encarna uma espécie de malandro ingênuo que, após receber um vasto repertório de adjetivos e vexames obrigados em nome do humor, é quem finalmente tira vantagem enganando a todo mundo.
No mês de abril, o centro de estudos afro-peruanos Lundú, ONG voltada para a luta contra a discriminação nesse país, encaminhou um pedido de censura à emissora responsável pelo programa humorístico, o canal de televisão Frecuencia Latina, a qual tirou o personagem do ar expressando sua surpresa com a polêmica gerada e deixando em claro que se tratava de uma decisão temporal adotada pela gerência da empresa.
Convite à retaliação
Em declarações à imprensa, os comediantes Carlos Álvarez e Jorge Benavides, diretores do programa censurado, se mostraram indignados com a posição do canal e manifestaram serem alvo de uma ‘mordaça’ política. ‘Se não abordamos temas políticos, vamos ficar bem, com certeza. Que ninguém venha a colocar uma mordaça que não vamos a aceitar’, comentaram os humoristas peruanos aos meios de comunicação locais.
Existem, nas redes sociais, em particular no Facebook, páginas criadas em solidariedade aos personagens censurados por discriminação. Até a primeira semana de maio, as pessoas que aderiram à causa contra a censura superaram dez mil inscrições.
Cabe ressaltar que não se trata de campanhas institucionais que circulam aleatoriamente pela rede mundial, e sim, de uma iniciativa civil local que vem ganhando simpatizantes (pessoas físicas, usuários visivelmente identificados) que argumentam que sentir-se aludidos pelos personagens do Negro Mama e a Paisana Jacinta é, no fundo, um ato de autodiscriminação, vindo de pessoas sem tolerância que não distinguem entre um programa humorístico e o racismo explícito.
Divulgados também nas versões digitais dos principais jornais peruanos, e sem estranhar moderação de qualquer tipo, as mensagens não só convidam de maneira explícita à retaliação contra a ONG Lundú, como também consignam o endereço físico da instituição junto ao nome da sua diretora, Mónica Carrillo que, afinal de contas, é o rosto mais visível nos meios.
Publicitários avaliam programa
Paralelamente ao pedido de censura promovido pela Lundú, ONGs feministas peruanas como Manuela Ramos e Flora Tristán pediram aos responsáveis pelo mesmo programa de humor tirar o personagem chamado Paisana Jacinta, que representa a vida de uma mulher andina recém-chegada à capital.
Com vestimentas típicas das zonas rurais peruanas, desdentada e pronunciando dificilmente o espanhol (na região andina predominam os idiomas quéchua e aimará), Jacinta resolve as mais diversas situações valendo-se de sua ingenuidade caipira. Neste caso, embora adjetivos nem sempre sejam expressamente falados, a paródia apela para uma série de estereótipos pejorativos dos migrantes andinos, muito divulgados entre a população desse país.
‘É uma brincadeira bater numa mulher e violentá-la, maltratar um homossexual, mofar-se dos negros ou dos diferentes e caricaturá-los como brutos, ladrões. E tudo isso sob o olhar tolerante da sociedade no seu conjunto’, divulgou a ONG Flora Tristán numa carta aberta publicada no seu site.
Até o momento, a Associação Nacional de Anunciantes do Peru (Anda), entidade privada que regulamenta a publicidade em meios de comunicação nesse país, colocou o programa de humor no alvo do seu comitê de ética, enquanto a Coordenadoria Nacional dos Direitos Humanos (CNDHH) manifestou no seu site o respaldo ao pedido de censura de ambos os personagens.
Outros links a respeito (em espanhol):
BBC: Amenazas en Perú por ‘El Negro Mama‘
Sobre a ONG Lundú
******
Jornalista e mestrando em Etnomusicologia, Unesp