Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Gênese do novo jornalismo?

O cenário não poderia ser mais propício.


O Teatro da Universidade Católica de São Paulo, o Tuca, com seus restos de paredes queimadas e marcadas pela trajetória de luta contra a ditadura, recebeu, pelo segundo ano consecutivo, jornalistas culturais, estudantes, artistas e interessados no assunto.


Pessoas que guardaram quatro dias de suas vidas para aprender, refletir e questionar o jornalismo cultural realizado no Brasil e no mundo. O II Congresso de Jornalismo Cultural, promovido pela revista Cult e pela CPFL Cultura, aconteceu em São Paulo, entre os dias 3 e 6 de maio.


Crise


A grande discussão girou em torno da crise da cobertura jornalística cultural. No Brasil e no mundo. Profissionais como Julia Encke, da Alemanha; Hervé Aubron, da França; e Beatriz Sarlo, da Argentina, fizeram uma análise do jornalismo cultural em seus países e também apontaram críticas à cobertura.


No Brasil, o questionamento foi centrado no enxugamento das redações, a diminuição de reportagens e pesquisas de campo, repórteres que fazem matérias exclusivamente por telefone e e-mail. Aliás, o uso da internet e das mídias digitais como propagação de cultura foi um dos temas do congresso, assim como a relação entre os bens culturais e a crítica mais ou menos especializada.


Praticamente unânime foi a constatação de que os jornais impressos atravessam processo de reestruturação. Com a rapidez das informações veiculadas na tevê e na internet, os diários impressos perdem espaço, com informações velhas, do dia anterior.


Por esse motivo, o colunista Carlos Heitor Cony, do jornal Folha de S.Paulo, disse que há seis meses não lê jornal. O jornalista e escritor Joaquim Ferreira dos Santos, do jornal O Globo, concordou: ‘O jornalismo da tevê está melhor, mais investigativo. O jornal não pode continuar falando o que a tevê já deu, e melhor’. Uma questão já antiga, com mais de quarenta anos, e ainda não resolvida.


Primeiro dia


Para abrir o congresso, na segunda-feira, 3, uma homenagem à escritora Clarice Lispector, que completaria 90 anos em 2010. De um lado, a pesquisadora de literatura Nádia Battella Gotlib falou sobre a vida e obra da escritora e detalhou o processo de pesquisa que originou o livro Clarice – Fotobiografia. De outro lado, a atriz e diretora Denise Stoklos recitou textos ao vivo, alguns deles contidos no romance A Paixão Segundo G.H., de Clarice, misturados a áudios de sua experiência pessoal sobre a transformação e o impacto que a escrita de Clarice lhe causou.


Ainda no primeiro dia, os jornalistas e escritores Eric Lax e Ruy Castro avaliaram a biografia. Ruy fez críticas ao livro-reportagem requentado, de jornalistas que aumentam uma matéria com grande repercussão, para lançar um livro de qualquer jeito. Disse também que não pretende fazer outra biografia, pois não vê um personagem interessante o bastante, a quem possa dedicar de três a cinco anos de sua vida.


Frases de efeito (‘O biógrafo sempre se envolve emocionalmente com os biografados. A diferença é que com a Carmem [Miranda] tive sonhos eróticos’), o jeito malandro de Ruy encantaram a plateia, que se divertiu com suas colocações bem-humoradas e sacanas. Eric falou basicamente sobre sua relação de 39 anos com o cineasta Woody Allen e recomendou: ‘Confiem no que a pessoa diz, mas chequem’. Para descontrair, Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra terminaram a noite com uma performance mais intimista e expressiva.


Segundo dia


Na terça-feira, 4, segundo dia de congresso, o grande destaque foi o debate sobre o jornalismo pós-mídias digitais. O editor-executivo da revista Veja, Carlos Graieb, a diretora de conteúdo do UOL, Márion Strecker, e a professora de comunicação da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Ivana Bentes expuseram muito mais do que o discurso pronto e politicamente correto sobre o avanço da internet.


Após defender as novas mídias, Ivana, mesmo sem querer, deixou claro que não era leitora da revista Veja e teve o apoio da plateia. Ela comentou que a revista era uma grande piada nos cursos de jornalismo do país. Os aplausos do público, formado basicamente de estudantes, confirmaram sua fala. Carlos Graieb, visivelmente surpreso com tamanha sinceridade da colega de mesa, educadamente tentou defender sua revista com os argumentos que não pareceram convencer o público, muito menos Ivana.


Márion disse que não gostaria que a discussão se mantivesse em um clima de Fla-Flu, mas também questionou a visão mais otimista do mundo digital democrático, defendida pela professora da UFRJ.


No período da tarde, os artistas foram convidados às mesas e deram um colorido especial. Alexandre Orion e Leda Catunda, artistas plásticos, revelaram sua relação com a mídia e trouxeram um olhar até então pouco explorado no congresso, o de vidraça.


Os artistas ressaltaram a importância da divulgação pela imprensa, mas também fizeram algumas críticas. Leda lembrou ainda que a própria classe artística precisa saber que o objetivo de fazer arte não está em ser unicamente reconhecido e em lotar galerias. ‘Acho que o mais importante são as questões que os trabalhos evocam, não se está fazendo sucesso, se fez fila ou se não fez’.


Na sequência, o papel da crítica musical foi colocado em discussão. Os críticos Jotabê Medeiros, de O Estado de S.Paulo, e Sérgio Martins, da Veja, além do músico Lobão e do maestro Júlio Medaglia, revelaram preocupação com o material produzido atualmente no jornalismo musical.


Para Sérgio, a preocupação principal é que muitas pessoas acreditam que, por gostarem de determinado artista, banda ou estilo de música, estão capacitadas a escrever; porém, muitas vezes, não possuem conhecimento histórico necessário para analisar as obras.


Terceiro dia


A mesma discussão foi resgatada na quarta-feira, 5, quando os críticos Inácio Araújo, da Folha de S.Paulo, e Luiz Zanin Oricchio, de O Estado de S.Paulo, além da cineasta Laís Bodanzky, debateram sobre a crítica de cinema e a produção contemporânea.


Para Zanin, ‘o cinema é o futebol das artes, porque todo mundo entende de cinema’. E completou: ‘Nunca houve tantos críticos como agora e nunca houve tão pouca repercussão social sobre o que se escreve sobre cinema’.


Logo depois foi a vez de o cineasta Eduardo Coutinho, expoente do documentário brasileiro, falar sobre como vê o cinema documental, além da relação de amor e de ódio com o jornalismo. Para ele, a prática jornalística é forma apressada e despreocupada em ouvir o outro, em dar tempo para a imagem falar por si (clique para ler a reportagem sosbre a palestra de Coutinho no congresso).


Quarto dia


Por falar em tempo, na quinta-feira, 6, uma das falas que mais encantou o público foi a da crítica de teatro Beth Néspoli. Ela discorreu sobre sua saída do jornal O Estado de S.Paulo e o interesse em voltar como colaboradora, futuramente. Mas Beth chamou atenção para o tempo.


Ela acredita que os jornais precisam entender e respeitar que o tempo influencia, e muito, a boa produção jornalística. Beth ainda comentou sobre o clima muitas vezes pesado na redação, para quem faz cultura, em relação aos colegas. ‘Editoria de `vagabundo´, de gente que só faz as coisas legais, mas que cobre, sim, `Cidades´ nos plantões, de gente que trabalha de manhã, de tarde e à noite vai ao teatro para fazer matéria na manhã do outro dia, já que o caderno de cultura é o primeiro a fechar’, desabafou.


Outro assunto bastante discutido no último dia do congresso foi a relação das faculdades de jornalismo, os treinamentos das empresas e a obrigatoriedade do diploma.


Para os representantes da Abril, Edward Pimenta, e do programa de treinamento da Folha de S.Paulo, Ana Estela de Sousa Pinto, a não-obrigatoriedade do diploma de jornalista para exercer a profissão não vai acabar com a contratação de jornalistas formados. A bem da verdade, já faz mais de dez anos que a Folha contrata profissionais sem diploma; o jornal sempre foi um dos principais defensores do fim da obrigatoriedade.


Os representantes dos cursos de jornalismo se posicionaram de forma mais crítica. Entretanto, o coordenador do curso de jornalismo da Universidade Metodista, Rodolfo Carlos Martino, afirmou que o importante é gostar do que se faz, para fazer bem-feito. ‘Sendo um grande repórter, você vai ter emprego, vai ter realização pessoal.’


O dia de hoje (e amanhã)


O congresso reuniu pessoas de todo o Brasil, jornalistas, estudantes, gente que gosta de cultura, mas não sabe se terá espaço para atuar na área. Gente que quer fazer diferente, mas como?


Várias iniciativas foram comentadas, mas praticamente não houve integração ou forma de quem participava dos debates mostrar sua produção jornalística.


No último dia, ao término do congresso, alguns trabalhos acadêmicos chegaram a ser apresentados na sala Paulo Freire, do Tuca. Basicamente, também avaliavam produções já existentes. Porém, grande parte dos congressistas já se fora e não viu.


Pouco se ouviu, portanto, sobre o interesse que o público presente tinha. Qual a sua visão sobre o jornalismo cultural e quais suas formas de pensá-lo ou desenvolvê-lo, o que acreditam que será o futuro?


Além de falar muito sobre cultura, também se discutiu no congresso, de forma abrangente, quem é o jornalista, qual seu papel na sociedade, como enxergar onde os olhos não veem. São perguntas particulares, por isso, sem respostas certas. Subjetivas como os conceitos de verdade e do próprio jornalismo.


Foi apenas a segunda edição do Congresso de Jornalismo Cultural, mas foram quatro dias intensos para se pensar que ainda é possível mudar o mundo pelo jornalismo, nem que primeiramente mude a si mesmo.