Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Política e o teste de fidelidade

O ex-deputado José Genoíno, presidente do Partido dos Trabalhadores, terminou sua apresentação no Roda Viva, na noite de segunda-feira (4/7), chorando e apontando para as queimaduras que ainda guarda das torturas que recebeu durante a ditadura militar. Alteando a voz, o deputado disse que até hoje suas noites são maldormidas em decorrência das violências que sofreu dos esbirros do regime autoritário.


Era o tempo reservado à sua última fala. Genoíno respondia a uma pergunta sobre a possibilidade de ter cedido, sob tortura, informações sobre a guerrilha do Araguaia. A pergunta não foi colocada num momento apropriado, já que durante as duas horas anteriores o Roda Viva deteve-se em questões como a operação do mensalão e o aval do publicitário Marcos Valério ao empréstimo de 2,4 milhões de reais tomado pelo partido que Genoino dirige. É disso, sobre as relações do partido com Valério, e a coincidência dos saques em dinheiro com o resultado das votações no Congresso, que a sociedade brasileira está querendo saber.


Se o programa demorasse um pouco mais, e para que não ficasse no ar a impressão de que a colocação da pergunta, naquele momento, comprometia a isenção da entrevista – já que o Roda Viva é, por seus méritos, um dos melhores e mais isentos programas jornalísticos da televisão brasileira –, seria de se esperar que algum dos jornalistas perguntasse ao presidente do partido governista se as cicatrizes seriam também uma autorização para que, 40 anos depois, o governo saísse comprando parlamentares da base aliada.


A única resposta possível a essa pergunta seria o ‘sim’. De outra forma, não haveria razão para o deputado chorar, gritar e mostrar suas queimaduras, porque não era disso que se tratava – e ao longo do programa ninguém havia sustentado que os militares davam aos guerrilheiros o tratamento, para utilizar uma expressão ali colocada duas semanas antes, de ‘freirinhas de convento’.


Resposta às denúncias


Misturar os assuntos não colabora muito para o esclarecimento da opinião pública. Pior: pode deixar a sensação de que se pretenda sustentar que os torturados pelo regime militar gozem hoje de uma espécie de autorização tácita para corromper e serem corrompidos.


Deve-se observar que isso obedece a uma lógica que, se eticamente absurda, é também cartesianamente possível. Seria o mesmo que sustentar a tese que pessoas que usam bigode, ou vestem camisa azul, têm licença para corromper. Estabelecidos os alicerces para a construção desse dogma, é fácil seguir adiante: basta checar a existência de bigodes ou de camisas azuis.


A performance de Genoíno ressalta, por oposição, um dos benefícios que a atuação do deputado Roberto Jefferson pode ter prestado à sociedade brasileira: mudar paradigmas essenciais do discurso político pela televisão.


É mais fácil negar a existência do mensalão do que a evidência de que nem o ‘teste de fidelidade’, ofertado diariamente pelo apresentador João Kleber ao público da RedeTV!, consegue ser tão desavergonhadamente falso quanto a maioria dos programas políticos promovidos pelos partidos no Brasil.


O que não é divertido é que justamente destes programas deriva a desinformação do eleitor, que mais tarde vai se transformar em decepção quando ele comprova, por exemplo, que sua confiança no compromisso ético de uma agremiação política deixou de ser correspondida.


O que o fez acreditar nesse compromisso ético? Resposta: exatamente a mesma coisa que o fez acreditar no teste de fidelidade do João Kleber.


E o que o faz acreditar numa pegadinha tão escancaradamente falsa? A garantia dada pelo animador de que tudo aquilo é verdadeiro.


O espectador crê no engodo que está diante de seus olhos, para cuja criação não é preciso nem esconder os microfones, simplesmente porque o apresentador lhe diz que aquilo é verdadeiro. E não é preciso que o apresentador apresente um currículo que o credencie para ser aceito como sincero. Ele diz – e isso é suficiente.


Muitos dos políticos que falam ao povo brasileiro pela televisão são menos talentosos que Kleber – mas alguns têm a cara-de-pau ainda maior. É isso que tem criado, ao longo dos anos, o nível de percepção que o eleitor tem hoje dos políticos que o representam. É isso que torna possível que o presidente do partido do governo responda às denúncias de corrupção mostrando as cicatrizes que ganhou numa sessão de torturas na guerrilha do Araguaia – e ninguém se pergunte pela relação que possa existir entre uma coisa e outra.


Aprimorar o embuste


Kleber e o seu ‘teste de fidelidade’ são bicampeões no ranking da baixaria promovido pela campanha ‘Quem financia a baixaria é contra a cidadania’, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. No Roda Viva, José Genoíno, lágrimas nos olhos, disse que misturar a guerrilha com investigação de CPI ‘é uma baixaria inaceitável’. O espectador concorda plenamente. Trata-se de saber de que baixaria estamos falando e lembrar a campanha da Câmara: quem a financia está atacando a cidadania.


É neste sentido que os depoimentos e as entrevistas do deputado Jefferson acabaram colaborando para acrescentar algum conteúdo ao discurso político exercido de maneira tão primária, tão ostensivamente ruim, pela televisão. Motivações e ideologia não entram nessa contabilidade. O fato é que a teatralidade bem construída diante das câmeras tem sido, para o deputado, um eficiente meio para o transporte de revelações bastante concretas sobre a maneira pela qual se dão as disputas por cargos no governo – e os detalhes escabrosos dos mecanismos de corrupção dos quais ele próprio confessa participar.


Findo o período agudo da crise, é impossível prever o que acontecerá com o país. Mas é razoável imaginar que os paradigmas do discurso político mudarão substancialmente, para melhor.


O eleitor poderá continuar sendo logrado, mas a qualidade do embuste vai mudar. O telespectador vai reclamar por algum conteúdo vicejando por trás de atuações infames. As pegadinhas políticas terão que avançar para manter alguém acreditando nelas.