Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um leitor clássico

Numa nota introdutória a Como funciona a ficção (Cosac Naify, tradução de Denise Bottmann), James Wood conta que escreveu a obra usando apenas ‘os livros à mão em meu escritório’. Uma olhada na bibliografia revela um pouco sobre os hábitos de leitura do ensaísta da revista The New Yorker, o mais influente crítico literário em língua inglesa hoje. Entre os 120 títulos citados por Wood, predominam os expoentes do cânone realista (Tchekhov, Henry James, Flaubert, Tolstói e Conrad, por exemplo, aparecem com três ou quatro obras cada) e nomes emblemáticos da literatura européia e americana do século XX (Proust, Joyce, Woolf, Nabokov, Bellow, entre outros).

A predileção pelos clássicos reflete o estilo do crítico, e Como funciona a ficção serve ao mesmo tempo como introdução a uma história canônica da literatura e guia para entender o método de Wood, que ganhou admiradores e detratores em duas décadas de carreira com passagens pelo jornal britânico The Guardian e pela revista americana The New Republic. No livro, o autor, também professor de crítica em Harvard, usa a leitura cerrada dos textos, frase por frase, para discutir aqueles que considera os principais elementos da criação literária, como construção de personagem, ponto de vista narrativo e efeitos de verossimilhança.

Em entrevista ao Globo por telefone, Wood explica sua concepção de realismo, que define não como um gênero literário, mas como ‘vida animada’: para ele, o que determina o realismo de um texto não é seu grau de verossimilhança, e sim o fato de transmitir ‘vitalidade’. Wood responde ainda às críticas que o acusam de se ater apenas aos mecanismos internos do texto e ignorar as relações entre as obras literárias e as questões políticas e culturais de seu tempo. Também autor de um romance (The book against God, de 2003, inédito no Brasil), Wood revisita a polêmica provocada por seu conceito de ‘realismo histérico’, criado num ensaio de 2000 sobre Zadie Smith, em que atacava outros autores contemporâneos como Salman Rushdie, Thomas Pynchon, Don DeLillo e David Foster Wallace pela prosa maximalista e por se preocuparem mais com fenômenos sociais do que com questões humanas.

***

‘A literatura é vida na página’

Você define o realismo não como um gênero literário, nem em termos de representação da realidade, mas como ‘vida animada’ (‘lifeness’). O que significa essa expressão?

James Wood – Tenho consciência de que é um termo desajeitado, e queria mesmo que soasse assim, em homenagem a todos que ao longo dos séculos tentaram falar da literatura como algo de certa forma relacionado à vida. Infelizmente, nos últimos tempos sempre voltamos a essa palavra incômoda, ‘realismo’, que acaba nos distraindo. Quero transmitir uma ideia de literatura como vida na página, e isso liberta o autor de ser um realista ou de escrever com verossimilhança. Um personagem pode ser pouco mais que uma voz, pode ser uma ausência ou um enigma, e ainda assim ter uma profunda vitalidade humana. É isso que quero dizer com ‘vida animada’.

E o que faz um bom personagem?

J. W. – Certamente esse conceito misterioso de vitalidade. Por isso é tão difícil construir um bom personagem, porque essa vitalidade vem do coração do escritor, é algo que ele simplesmente tem ou não. Todos sabemos, ao abrir um livro, se ali há vida. É uma daquelas coisas que não podem ser ensinadas. Outro critério para um bom personagem é uma qualidade de mistério, uma sutileza, um elemento inexplicado que está além do texto. E não precisa ser um personagem redondo. Muitas vezes um personagem plano, que tem apenas uma característica marcante, se torna enigmático para nós precisamente por não termos muita informação sobre ele. É difícil responder a essa pergunta, mas tem algo a ver com vitalidade e mistério.

Você encontra essa ‘vitalidade’ em obras que fogem ao cânone realista e rejeitam noções ligadas a ele, como a própria ideia de personagem?

J. W. – Claro. Em Beckett, por exemplo, mesmo em suas últimas obras, que parecem narradas por um fantasma ou um morto, existe vitalidade. Há algo na linguagem que transmite vida. Em ‘Como funciona a ficção’, menciono o livro de Saramago sobre Ricardo Reis (‘O ano da morte de Ricardo Reis’, que imagina uma biografia para o heterônimo de Fernando Pessoa), no qual há algo de maravilhosamente vívido. Embora seja a história de um fantasma, esse personagem está vivo, e a maneira como Saramago desdenha do sistema de pontuação e gramática transmite vitalidade. Em ‘Austerlitz’, de Sebald, você sente que uma vida foi oferecida a você. Ao fim do livro, o personagem continua um enigma completo, procurando pelos pais assim como estava no início, mas toda uma história de vida desfilou diante dos seus olhos. E Philip R oth, em ‘O avesso da vida’, faz o que eu chamo de ‘jogos sérios’ com as convenções do realismo, que denotam uma presença humana.

Você cita Roland Barthes como uma grande influência. Ele é símbolo de uma época em que a crítica literária tinha muita ascendência sobre outros campos de estudo, o que não é mais o caso. Do ponto de vista de alguém que está tanto na academia quanto na imprensa, onde acredita que se pode encontrar boa crítica hoje?

J. W. – De fato, aquela época excitante da crítica literária deu lugar a uma mais insossa. No tempo de Barthes, havia uma confluência de excitação política e efervescência interdisciplinar. Mas um jeito otimista de olhar para isso é que, quanto mais provinciana e desimportante fica a crítica acadêmica, mais espaço há para o ensaísmo e a crítica jornalística. Acho que a boa crítica pode ser encontrada aí. Escritores e leitores ainda mostram interesse pela forma do ensaio, principalmente aqueles que se movem entre a resenha e o discurso acadêmico. Na academia sou visto como alguém mais ligado ao jornalismo, porque os departamentos de literatura tendem a considerar que só os acadêmicos podem refletir sobre a literatura.

O que você aprendeu com as críticas ao seu próprio romance, ‘The book against God’?

J. W. – que a maioria dos problemas que eu via no romance eram visíveis. Nem todas as resenhas eram bem escritas, mas a maior parte delas tocava nas fraquezas do livro, então aprendi que mesmo as resenhas menos inteligentes contêm pelo menos uma verdade. Aprendi também que escrever um romance é muito solitário, porque você nunca pode dizer se é bom ou não, e não consegue confiar na opinião de ninguém. Tenho planos de escrever outro, nem que seja só para melhorar um pouco em relação ao primeiro. A experiência foi como quando você está doente e promete a si mesmo que, ao melhorar, vai ficar eternamente grato pela boa saúde, mas pouco depois se esquece completamente disso. Por um tempo, depois de publicar o romance, fiquei consciente de como é ser criticado e pensei: ‘Ok, vou ser mais legal com os outros daqui em diante’. Mas logo me esqueci disso e comecei a implicar de novo.

Sua atividade como crítico também é alvo de muitas críticas. Já foi dito, por exemplo, que você se detém excessivamente em aspectos de estilo e não se preocupa com a relação das obras com questões políticas e culturais de seu tempo. Como recebe essas críticas?

J. W. – Dizer que não me concentro em questões políticas e sociais não está errado, mas esse pensamento tende a privilegiar uma certa visão da atividade crítica, e há um outro tipo de crítico que é mais um esteta. Tenho consciência das minhas limitações, e fui levado por essas críticas a tentar sair de um hábito que eu havia adquirido, o de criticar sempre os mesmos livros. Essa foi uma das razões da minha mudança para a ‘New Yorker’, onde tenho podido escrever com entusiasmo sobre uma gama de autores contemporâneos. Estou tentando ampliar meu escopo. Geralmente escolho escritores de que gosto, mas sei que não sou especialmente receptivo ao pós-modernismo. Tentei nos últimos tempos não resenhar livros que sei que não vou gostar, mas procuro autores contemporâneos sobre os quais sinto que posso dizer algo interessante. Recentemente escrevi sobre Aleksandar Hemon e Geoff Dyer, dois autores que evadem caracterização fácil e estão longe do que se costuma definir como realismo.

Você também foi criticado ao definir como ‘realismo histérico’ o estilo de uma gama de autores que ia de Thomas Pynchon e Salman Rushdie a Zadie Smith e David Foster Wallace. Ainda acha o termo válido?

J. W. – Quando me criticaram pelo ‘realismo histérico’, sempre deixaram de fora a parte mais importante, que era minha crítica ao próprio realismo. Eu sentia que em alguns autores, como Rushdie, a escrita simplesmente não era interessante, porque, de um lado, parecia humanamente implausível, e, por outro, apenas imitava a gramática básica do realismo. Com Pynchon é o mesmo, nos últimos livros está lá o tom farsesco que todos amam nele, mas, frase por frase, não há nada que force os limites do realismo, nada radical como em Beckett. O mesmo vale para Paul Auster, cujos livros estão cheios de jogos pós-modernos superficiais, mas 80% daquilo são indistiguíveis da mesmice realista que se vê por aí. Acho que a crítica continua atual, mas eu faria algumas ressalvas. De todos eles, David Foster Wallace era claramente alguém que estava tentando fazer algo novo no nível da frase. Ele estava ‘escrevendo a dificuldade’, por assim dizer, e é preciso dar crédito a ele. No fundo, os verdadeiros alvos eram Rushdie e Pynchon.

***

Tradutora critica edição

A tradutora de Como funciona a ficção, Denise Bottmann, declinou da responsabilidade pela versão final do livro. Denise alega que, nas passagens em que Wood cita outros livros, o uso de traduções já existentes prejudica a coerência do texto. Ela cita como um dos exemplos o capítulo sobre discurso indireto livre, onde um trecho de Henry James que ilustraria o tema não está nessa forma. Diretor editorial da Cosac Naify, Cassiano Ellek Machado afirma que as traduções dos trechos citados por Wood são de responsabilidade de profissionais reconhecidos, e que o rigor da edição reparou até mesmo equívocos do próprio Wood. Um artigo de Denise e a resposta completa de Cassiano podem ser lidos no Prosa Online (oglobo.globo.com/blogs/prosa).