COPA DO MUNDO
A comédia da Copa
‘Susana Vieira e eu na Copa do Mundo. Susana Vieira comentará as partidas na TV. Eu comentarei as partidas no rádio. Por quê? Porque ninguém se interessou em me contratar para comentar a Divina Comédia, de Dante Alighieri. Susana Vieira é minha Beatriz na Cidade do Cabo e em Johannesburgo.
Eu sou um cronista como Nelson Rodrigues. Eu sou um reacionário como Nelson Rodrigues. Eu sou pago para fazer comentários sobre a Copa do Mundo como Nelson Rodrigues. Agora só tenho de me tornar um Nelson Rodrigues.
Eu fui da literatura para a imprensa, da imprensa para o rádio. É por isso que simpatizo com Robinho. Ele tem uma trajetória semelhante à minha: do Real Madrid para o Manchester City, do Manchester City para o Santos. Eu simpatizo também com Kaká. Melhor dizendo: eu o idolatro. Eu gostaria de ganhar um dos maiores salários de todos os tempos para permanecer sentado no banco de reservas, tirando a franja da testa. Eu sou bom em matéria de tirar a franja da testa. Mas o jogador do Brasil com o qual realmente me identifico é Felipe Melo. Sempre que, durante o programa de rádio, Wanderley Nogueira me passa a bola, eu me embanano todo e, como Felipe Melo, acabo recuando para o zagueiro. Na Copa do Mundo, minha torcida será inteirinha para ele. Ele me representa. Vai, Felipe Melo! Mostre ao mundo do que é capaz uma pessoa sem talento, sem juízo e sem discernimento.
O melhor personagem desse time do Brasil, no entanto, é o técnico Dunga. O que me atrai nele – e Nelson Rodrigues seguramente concordaria comigo – é aquele seu aspecto de coronel da Operação Bandeirante. Se Carlos Alberto Parreira, em 2006, perdeu a Copa do Mundo porque convocou apenas jogadores lesados e fora de forma, Dunga, em 2010, resolveu dobrar a aposta, convocando jogadores ainda mais lesados e fora de forma. Num momento como o atual, em que o Brasil é dominado pelo populismo mais ordinário, Dunga ignorou os apelos da arquibancada e repudiou Ganso e Neymar. Ganso e Neymar consagraram-se em partidas contra o Rio Branco e o Guarani. Escalá-los numa Copa do Mundo contra a Espanha e a Inglaterra seria o mesmo que escalar Lula para negociar com o regime genocida iraniano.
Dante Alighieri usou a Divina Comédia para fazer proselitismo contra o papa Bonifácio VIII, colocando-o no Inferno, enterrado num fosso, só com as pernas de fora. Eu uso o rádio para fazer proselitismo contra o PT. Do amistoso com o Zimbábue, um sinal do apoio de Lula a Robert Mugabe, essa mistura de Mussolini com Grande Otelo, aos aloprados da CBF, que se comportam como os aloprados do PT, eu sempre dou um jeito de condenar essa gente ao castigo eterno. Agora só tenho de me tornar um Dante Alighieri. E Susana Vieira me conduzirá à Luz.’
Roberto Pompeu de Toledo
O futebolês ao alcance de todos
‘A esta altura o leitor já deve estar familiarizado com ‘vuvuzela’, ‘bafana bafana’ e ‘jabulani’. Não? Em atenção aos retardatários, ‘vuvuzela’ é a corneta de plástico que os sul-africanos tocam nas comemorações em geral e, especialmente, durante os jogos de futebol. A expressão brasileira ‘durma-se com um barulho desses’ é bem anterior, mas bem poderia ter nascido quando o primeiro sul-africano deu o primeiro sopro em sua vuvuzela. Ou melhor: não poderia. É pouco. A vuvuzela impede não apenas o sono, mas muitas outras coisas, inclusive, e principalmente, assistir sossegado a um jogo de futebol.
‘Bafana bafana’ é o nome local da seleção sul-africana. Quer dizer ‘meninos meninos’. Já saber por que ‘meninos meninos’, repetindo duas vezes a mesma palavra, é algo que exige maior domínio da cultura sul-africana. Fica para depois de estudos mais aprofundados. ‘Jabulani’, que quer dizer ‘celebração’, é o nome da bola produzida para esta Copa do Mundo, tão criticada pelos jogadores – e com isso podemos nos dar por satisfeitos. Já atingimos uma boa base de zulu. Mais atenção merece a língua adotada pelos narradores e comentaristas de futebol. Em Copas do Mundo muita gente sem intimidade com o esporte gruda-se à tela da TV. Dominar o idioma praticado durante as transmissões pode ser útil.
Primeira lição: caiu em desuso dizer que um time, ou um jogador, é bom. Diz-se que ‘tem qualidade’. Ou que não a tem. ‘Qualidade’ é a palavra-chave. Os jogadores já foram contaminados pela moda. Também para eles, é ‘qualidade’ para cá, ‘qualidade’ para lá. Segunda lição: não vá o desavisado chamar estádio de ‘estádio’. É ‘arena’. ‘Arena’ tem maus antecedentes. Já foi o nome do partido político que apoiava a ditadura e antes disso, muito antes, era o local em que os gladiadores se estripavam, entre si ou de encontro às feras. Já estádio indica o local das exibições de ginástica e das provas olímpicas. Um aponta para a brutalidade romana, outro para a harmonia grega. A brutalidade romana, nos dias que correm, tem a dianteira.
Outras expressões são mais técnicas, e exigem dos leigos redobrado empenho, se desejam atualizar-se. Quando se ouvir falar em ‘assistência’, não se imagine que o locutor esteja se referindo ao público nas arquibancadas nem, claro, à necessidade de ambulância para socorrer algum ferido. Importado do basquete americano, o termo nomeia o último passe antes do chute em direção ao gol. Ou seja: o passe que deixa o jogador que o recebe ‘na cara do gol’, como se diria na boa e velha linguagem surgida nas asperezas do gramado, não no luxo das cabines de transmissão.
‘Valorizar a posse de bola’, ‘proposta de jogo’ e ‘chamar a si a responsabilidade’ são outras expressões que merecem esclarecimentos. ‘Valorizar a posse de bola’ significa a insistência em trocar passes sem o objetivo imediato de avançar em direção ao gol adversário e, no limite, para de novo voltar ao cru jargão de antigamente, ‘fazer cera’. Curioso, no futebol como na vida, é o destino das expressões. O primeiro que falou em ‘valorizar a posse de bola’ foi muito bem. Deu precisão ao fenômeno. Tão bem que seu achado passou a ser repetido à exaustão. Pronto: virou frase feita. E tão feita que começou a ser usada pela metade: ‘Ele (tal jogador) está valorizando’.
‘Proposta de jogo’ tem em comum com ‘valorizar a posse de bola’ o ar erudito. Significa a disposição com que o time, sob orientação do técnico, entra em campo – na defesa, logo partindo para o ataque, ou algo entre uma coisa e outra. Seria como o lance de abertura no xadrez. Mas não se iluda o novato. No futebol, o imponderável é mais forte do que qualquer proposta, e pode virá-la do avesso em poucos minutos. Já ‘chamar a si a responsabilidade’ é o elogio que se atribui ao jogador que se destaca pela presença combativa e pela liderança. A expressão tem uma trajetória semelhante à de ‘valorizar a posse de bola’. De achado virou frase feita, com direito também ao uso abreviado: ‘Ele (tal jogador) chamou a responsabilidade’.
O colunista fez o possível. Espera ter contribuído para que o leigo, quando ouvir ‘Ele está valorizando’, não imagine que o jogador em questão esteja se valorizando para ser vendido ao futebol europeu. (Mesmo porque, entre os jogadores que disputam a Copa, quase todos já estão lá; vista de certo ângulo, a Copa é um torneio dos times europeus recombinados.) Ou que, ao ouvir ‘Ele chamou a responsabilidade’, não se atrapalhe e, em meio ao coro de vuvuzelas, pergunte: ‘Como? Quem é que ele está chamando?’.’
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