Em ‘Ética, imprensa e vida privada‘, Leneide Duarte-Plon, neste Observatório, afirma ser incompreensível fazer uma releitura a respeito de uma atitude ética tomada no passado. Refere-se a jornalista à não-divulgação, à época, da suposta chantagem por parte de um michê como motivadora do suicídio de Pedro Nava. No mesmo rumo segue a argumentação de Michel Plon (‘Reflexões sobre um suicídio e o papel da imprensa‘), também veiculada neste OI. Ambos os textos remetem ao de Luiz Cláudio Cunha (‘O mea-culpa de Zuenir Ventura‘, OI de 25/5/05) e ao de Ricardo A. Setti (‘O livro de Zuenir e um papelão que eu fiz‘, OI de 14/6/05).
Luiz Cláudio, resenhando o recém-lançado Minhas histórias dos outros, de Zuenir Ventura, se detém a abordar ‘o pacto de silêncio’ firmado entre os profissionais de imprensa quando do suicídio do escritor Pedro Nava. Ele próprio um dos personagens daquela pactuação, Luiz Cláudio se filia à mesma interpretação de Zuenir. Também Ricardo Setti, outro dos integrantes da Istoé juntamente com Zuenir, é de opinião que a decisão tomada na época, de impedir o acesso ao leitor àquela informação – o telefonema e a ligação com o michê – prendeu-se a um ‘espírito de corpo’, um tratamento privilegiado sustentado discursivamente sobre um dever de resguardo da vida privada que, referida a outro personagem menos ilustre, não teria sido brindada com o mesmo argumento. Segundo relatos dos envolvidos, Ziraldo teria sido um dos fortes defensores do silêncio, enquanto Artur Xexéo, um dos repórteres encarregados de apurar o rumor, argumentava pelo direito de informar.
Leneide e Michel Plon se associam à tese de que a supressão da notícia deveu-se exclusivamente ao direito à inviolabilidade da intimidade. Jornalista e psicanalista, preferem enfocar apenas este aspecto e esta versão e, a partir daí, discutir as péssimas qualidade, profundidade e ética que atualmente contaminam os veículos de informação.
Ziraldo e seu código
Ocorre, porém, ainda que concordando com eles sobre os limites a serem considerados entre vida pública e privada, não ser plausível atribuir sentido ético a uma conduta que, segundo os próprios jornalistas que detinham o poder de decidir pela publicação ou não reconhecem, foi, sim, fruto de uma interpretação diferenciada, em prol de um ‘espírito de corpo’ – o dos jornalistas e escritores, ou simplesmente intelectuais.
As perguntas que se colocam nesse caso são: tivessem os citados jornalistas apurado em suas investigações uma outra motivação, por exemplo, que o telefonema fora dado por um agiota, teriam deixado de noticiar? Ou, como um dos próprios profissionais de imprensa envolvidos no evento – Setti –, problematizou, fosse, em vez de um escritor famoso, um anônimo qualquer, teriam os jornalistas ponderado sobre os efeitos da notícia na pessoa da viúva e na imagem do falecido?
Outro questionamento oportuno seria se teve o cartunista Ziraldo – o principal a se bater pela tese do silenciamento – ao longo de sua carreira o mesmo rigor ético no enfoque de outros temas, com outros personagens. Pautou-se pelo mesmo código de valores morais quando, por exemplo, pelas páginas d’O Pasquim, com seu poder de formador de opinião, usou reiteradamente da zombaria como arma de desqualificação da imagem pessoal das feministas e, via de conseqüência, do movimento feminista? (ver James Green, Além do Carnaval, Unesp, 2000, pág. 419; Rachel Soihet, Culturas políticas: Ensaios de História Cultural, História Política e Ensino de História; Bicalho, M. F., Gouvêa, M.F.S., orgs., e Jornal Lampião da Esquina, pág. 7, nº 13, junho de 1979, matéria ‘A ironia de um certo humor’.)
Proteção ‘de um igual’
A respeito da contumácia em ‘preservar’ (apenas) a vida privada de pares, deve-se recordar atitude do mesmo Ziraldo ao suprimir, do texto do jornalista Sérgio Augusto, na edição de 18/5/1979 de O Pasquim, o nome do editor do caderno Internacional do Jornal do Brasil, Isaac Pitcher, como o autor da bolinação na recepcionista do sexto andar (‘sem maiores escrúpulos, enfiou, sem a menor cerimônia, a mão no decote da moça, apertando-lhe o seio’), em 5/5/1979 (ver jornal Lampião da Esquina, nº 13, junho de 1979, página 14, coluna ‘Bixórdia’, e página 7, ‘Um protesto contra a rotina da bolinação’, de autoria de Isa Cambará – o caso foi resolvido como sempre: a preservação do nome e da imagem do autor do abuso e a demissão da moça).
Uma coisa é o padrão ético que se desejaria ver regendo as ações dos jornalistas responsáveis pelos conteúdos apresentados pelos veículos de informação. Outra são os parâmetros usuais nos quais têm se movido. Outra, ainda, é querer atribuir um sentido pessoal à ação de outrem, eles próprios (Zuenir, Setti e Luiz Cláudio) envolvidos nos acontecimentos, afirmando explicitamente ter sido outra a motivação.
Na interpretação dos fatos, há que se ater sempre ao contexto da época, às mentalidades vigentes no período. Às formas mentais que regiam as ações, atribuindo-lhes significados – positivos ou negativos. Do cotejo dos depoimentos desses três jornalistas com a contumácia do cartunista em ‘preservar’ os seus e desacreditar os ‘outros’ (feministas, homossexuais), percebe-se que o motor da ‘preservação da intimidade’ do escritor foi mesmo o espírito de proteção ‘de um igual’ (do mesmo estrato cultural). Por envolver aspectos tidos como moralmente desqualificantes – relações afetivo-sexuais entre pessoas adultas do mesmo sexo –, a alternativa do pacto de silêncio venceu. Nenhum jornalista quis assumir a responsabilidade de divulgar ao leitor comum a versão já pública entre os profissionais da imprensa sobre a vida privada de um homem público que, mais do que isso, era principalmente um homem das letras, membro, portanto, do mesmo grupo.
Dupla ética
Nesse contexto, o da estigmatização de determinadas formas de expressão de afeto e desejo, mormente em personalidades de alta referência pública, é que houveram por bem aqueles profissionais da imprensa preservar a imagem do escritor.
Se semelhante resgate histórico, por um lado, alcança a esfera da vida íntima de uma personalidade pública, por outro, dado que pública, amplia ainda mais a dimensão social do cenário. Nesse sentido é preciso evocar mais uma vez o movimento feminista e recordar sua exaustiva demonstração dos aspectos políticos dos atos privados, organizados numa mesma estrutura de significação e poder.
A versão agora revelada traz em si embutida, além da dupla ética (nossos x estranhos) e da polarização público x privado, uma questão de fundo que a nossa sociedade – e imprensa – insistem em não se deter a analisar com a profundidade e a seriedade devidas: a dos efeitos nefastos do estigma e, no caso, específico, do estigma àqueles que ousam expressar sua orientação afetiva e sexual para pessoa de seu próprio sexo.
Efeitos perversos
É contra a permanência desse estigma que diariamente em nosso país – nas escolas, nas famílias, em relações empregatícias, de vizinhança e em atitudes de policiais – marca de forma extremamente danosa à saúde biopsicológica de pessoas orientadas homossexualmente que os movimentos GLBTTs estão a lutar, já há 27 anos no Brasil. Denunciam os elevados índices de violência praticados nesses contextos, exigem ações de Estado capazes de interromper esse círculo de horror, lutam por uma cidadania isonômica.
A imprensa, contudo, prefere continuar a tratar a questão mais pelo seu aspecto folclórico, exótico, caricato. Para se ter uma idéia, somando-se apenas as categorias Ameaças de publicização da prática homossexual com Extorsão, Extorsão Policial e Constrangimento, listadas nas estatísticas do Centro de Referência Contra a Violência e Discriminação ao Homossexual (CERCONVIDH-DDH/RJ), temos, para o ano de 2004, o índice de 9,26% das denúncias. Para 2005, até 29/4/2005, esse quantitativo vai para 12%. Nos tipos Agressão Física, Agressão Verbal, Ameaça de Agressão Física, Ameaça de Morte e Homicídio, temos, em 2004, 25,30%, e 27,99%, de janeiro a 29/4/2005.
Enquanto nosso país, principalmente em seus veículos de informação, não decidir discutir profunda e amplamente o estigma imposto aos GLBTTs e seus perversos efeitos pari passu com a deslizante moral em que estruturamos nossas relações sociais, diferenciada segundo o capital social de que se disponha, continuaremos sendo essa sociedade em que a rede de relações, o segmento sociocultural a que se pertença instituem tipos peculiares de cidadania.
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Mestranda em Política Social e graduanda em História (UFF), graduada em Direito (UFRJ), pesquisadora do processo de luta dos segmentos GLBTs por uma cidadania isonômica no Brasil