O refrão da música de Chico Buarque ficou imortalizado como uma das marcas da luta contra a ditadura. A ambiguidade da expressão ‘cálice’ era a representação criativa do anseio de afastar o silêncio que atordoava muita gente. Passados os anos de chumbo, o silêncio ainda permanece. Frequentemente, somos obrigados a nos calar, ou, para usar um eufemismo, não nos é permitido responder. O que na prática é mesma coisa.
A televisão é uma das muitas maneiras de impor o silêncio. Em 1996, o sociólogo francês Pierre Bourdieu, em entrevista ao Jornal do Brasil, afirmou: ‘A televisão é uma lavagem cerebral, uma despolitização trágica, um instrumento antidemocrático.’ Dando o exemplo da TV norte-americana, Bourdieu caracterizou o ato de ver televisão como uma ‘experiência terrível’. Para o pensador francês, a caixa mágica resume-se a uma avalanche de propaganda, propaganda e mais propaganda, numa clara demonstração dos interesses mercadológicos por trás da telinha. De fato, Bourdieu tem razão. Se levarmos em conta – e acho que devemos – algumas reflexões feitas por Muniz Sodré em seu livro O monopólio da fala, chegaremos a uma conclusão perigosa sobre a função da TV.
Um mundo diferente do real
Trilhando, de certa maneira, o mesmo caminho que Bourdieu, Sodré diz ser a televisão uma ‘violência’ ao processo comunicativo. Comunicação é, primeiramente, diálogo. Deve haver reciprocidade entre falante e ouvinte. A televisão não permite a troca plena da comunicação, não há possibilidade de resposta para o interlocutor. É nisto que consiste o monopólio do discurso, na eliminação da possibilidade de resposta, na hegemonia do falante sobre o ouvinte.
Penso que Bourdieu e Sodré estão certos. A TV ‘castra’ o interlocutor. Antes que os cínicos façam gracinhas, devo advertir que resmungar discordâncias, sentado na poltrona de casa, não vale como resposta. Quem vê TV, não faz TV. O conteúdo veiculado impede a compreensão do mundo como ele de fato é, criando falsas ideologias. A televisão, sob a perspectiva de uma sociedade cindida em classes e voltada para os interesses do mercado, torna-se um poderoso instrumento de homogeneização do grotesco e do vazio. A TV apresenta um mundo diferente do real com a desculpa de que as pessoas estão cansadas de realidade. Faltou dizer que, entre produzir obras de ficção e mascarar a verdade, existe um abismo imenso.
Não estamos mais nos anos de chumbo, é verdade. Mas a enorme ambição de afastar o ‘cálice’ ainda persiste.
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Jornalista e escritor, Natal, RN