Passava das 15h de 22 de fevereiro. Três passageiros aguardavam a partida de uma van que percorreria os 571 km entre a estação da Praça Moncef Bey, em Túnis, e a cidade de Ben Gardane, próxima ao posto de fronteira de Ras Jdir, na Tunísia, junto à Líbia. A espera já durava mais de uma hora quando um jovem branco, alto, trajando roupas ocidentais e portando bolsa de couro se aproximou em busca de informações sobre transporte para a cidade balneária de Djerba. ‘Você é jornalista’, afirmei. ‘Você também’, respondeu, após confirmar com um rápido aceno.
Naquele instante não soube seu nome, sua nacionalidade ou o veículo para o qual trabalhava. Apenas seu telefone, um número britânico. Havíamos divergido na escolha da cidade fronteiriça, e por essa razão decidíramos manter contato nos minutos que se seguiriam, após consultas telefônicas com fontes locais capazes de informar qual o melhor ponto de parada: Ben Gardane ou Djerba. Às 15h31, uma mensagem de texto no meu celular dirimiu as dúvidas: ‘Ben Gardane é melhor’.
Assim, em um acaso que se somara à confiança mútua, conheci o iraquiano Ghaith Abdul-Ahad, 35 anos, correspondente em Beirute e enviado especial do jornal britânico The Guardian à Tunísia e à Líbia. Dezessete dias mais tarde, eu me flagraria multiplicando conversas de bastidores, contatos telefônicos com fontes e entrevistas a veículos como CNN, BBC, AP e France 24 em nome de uma campanha: #free4ghaith ? Freedom for Ghaith.
Filho de pai iraquiano e mãe indiano-britânica, nascido em Bagdá, Ghaith é uma versão moderna de Philip Pirip, protagonista de Charles Dickens no romance Grandes Esperanças, de 1860. Não por ter recebido fortuna de um benfeitor, mas pelo fato de, em uma década, ter deixado as profundezas esfaceladas de seu país para brilhar, por talento próprio.
Consequências imprevisíveis
Estudante de arquitetura na Universidade de Bagdá, Ghaith fez uma opção de vida ao desertar do Exército de Saddam Hussein. Por seis anos perambulou pelo submundo da capital iraquiana, trocando de residência sempre que se sentia prestes a ser preso. Em 2001, ainda sob o regime, começou a praticar street photography. Seu trabalho testemunhou a evolução dos fatos históricos em seu país, em especial com a chegada dos tanques aliados após a Guerra do Iraque. A queda pela fotografia, entretanto, teve um preço: seus três primeiros períodos de prisão.
Em 2005, seu trabalho como fotógrafo, que viria a ser publicado em veículos como The New York Times, Washington Post e The Times, passou a receber distinções. A primeira foi a indicação ao Amnesty Media Awards, dedicado a jornalistas especializados em direitos humanos. Ghaith já se voltava à cobertura dos movimentos insurgentes no Iraque. Fluente em inglês, lançou-se na criação dos próprios textos – ainda hoje escritos com papel e caneta, e só então transferidos para o computador. Há seis anos escreve para The Guardian.
Em 2008, receberia o British Press Awards como correspondente estrangeiro do ano, em especial por suas coberturas em regiões de risco no Norte da África e no Oriente Médio, como o Afeganistão – onde já foi mantido em cativeiro por duas vezes pelo Taleban.
Como repórter, o jovem que conhecera o mar aos 29 anos preencheu 95% das folhas de seu passaporte com vistos da região. O problema: seu último visto foi para ingressar na Tunísia, não na Líbia. Na ausência de autorização do governo líbio, que tentava impedir a entrada da imprensa, ele ingressou no solo de Kadafi pelo posto de Dehiba, na Tunísia, com a colaboração tácita de autoridades dos dois países e a concordância dos rebeldes de Nalud, a 60 km de distância.
O que se seguiu já foi narrado, do contato com os insurgentes e do diagnóstico da perda temporária de controle no oeste por parte do regime até nossa prisão em Sabratha. Kadafi pretendia contra-atacar em cidades que se rebelaram, como Nalud e Zuwara. E as consequências desse ataque seriam imprevisíveis para as populações locais. Mesmo a devastação não poderia ser excluída, como de fato se confirmaria em Al-Zawyiah, a 30 km de Trípoli.
Manobras de bastidor
A função de denunciar genocídios é exercida por poucos repórteres, e entre eles só alguns dispõem de habilidade singular. Ghaith é um deles. Falar a língua local ajuda muito, mas seu biótipo não, nem seu estilo. Afinal, o casaco Burberry, o jeans Levi’s, o relógio Tag Heuer Carrera e a bolsa de couro pouco têm a ver com o visual local. Tampouco sua câmera Leika M8 e seu iPad.
Mas esse estilo pessoal não é feito apenas para a guerra. Mesmo nos momentos mais tensos, Ghaith e seus telefones, um deles movido a US$ 500 em créditos líbios ? uma infinidade ?, estão a serviço das relações em geral. Que o diga Safa, também repórter de guerra, com quem ele vive em Beirute. Entre sua obsessão por telefonemas para fontes e outros jornalistas, eram flagrantes os momentos em que falava manso para transmitir os sentimentos à noiva. Sim, Ghaith é um galanteador, porém um galanteador com medo de camundongos, como ficou claro em uma fazenda em Sabratha, onde dormimos no chão em companhia de uma família de roedores na véspera da prisão.
Após 14 dias de detenção, Ghaith foi libertado pelas autoridades líbias. Até o último momento, correu o risco de ser levado aos tribunais por espionagem, como queria o serviço secreto de Kadafi. Escapou por obra de manobras diplomáticas de bastidores. Horas depois de sair da cela, escreveu em meio à madrugada uma mensagem de texto cheia de segurança e bom humor, enviada da Turquia. ‘Crazy brazilian…’, começava o SMS.
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Jornalista