No rádio, na televisão, nos artigos que assina ou em conferências que ministra dentro e fora do Brasil, o paranaense Mario Sergio Cortella consegue um extraordinário feito. Com suas provocações filosóficas, sempre propositivas, envolve platéias de todas as idades num exercício que só os autênticos filósofos sabem partilhar: o de fazer pensar, com razão e sensibilidade, o sentido que cada um de nós dá à própria vida. Mais: convida a pensar sobre qual direção estamos tomando como sociedade: se a dos novos rumos, que nos permitem, não sem resistência, abrir um leque de modos sustentáveis de estar no planeta, ou a das surradas e conhecidas escolhas nocivas dos nossos tempos, as quais Cortella apropriadamente denomina de ‘biocidas’.
Afetuosamente chamado pelos amigos de ‘pedagogo das multidões’, Cortella é mestre e doutor em Educação pela PUC-SP, onde leciona desde 1977 – hoje ele ocupa a cadeira de professor-titular do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação. Autor de vários livros, acaba de lançar o título Viver em paz para morrer em paz, volume de estréia da coleção ‘O que a Vida me ensinou’, das editoras Saraiva e Versar.
Nesta entrevista, o filósofo militante reflete sobre temas relacionados à sustentabilidade e à ética. A maneira como coloca suas ideias revela o porquê de o educador Paulo Freire ter dito que Cortella ‘é um dos poucos filósofos brasileiros que pensa o novo’.
A lógica da predação
O senhor usa o termo sociedade biocida para qualificar a forma como a humanidade tem habitado o planeta. Esta é uma escolha coletiva consciente?
Mario Sergio Cortella – Nós, homens e mulheres, somos seres que em nossa evolução, isto é, em nossa trajetória de mudança, em um determinado momento que se corporificou por volta de dez mil anos atrás, nos distanciamos da determinação biológica e ganhamos um nível de consciência e de atividade que passou a nos permitir fazer escolhas. Ao nos ‘descolarmos’ da nossa pura natureza, nós, humanos, ganhamos a possibilidade de ser um animal deletério. Por escolha e juízo, optamos por ser destrutivo-predatórios.
O instinto de sobrevivência falou mais alto nesta escolha?
M.S.C. – Evidentemente que há toda uma lógica da predação no mundo do equilíbrio natural relacionada à sobrevivência, mas uma coisa é a relação com a sobrevivência, outra coisa é o ser humano movido pela brutalidade da consciência, pelo egoísmo, pela escolha consciente de diminuir um outro ser vivo. São caminhos que tomamos como espécie, mas a grande esperança é que podemos deixá-los de lado. Por que se houvesse aí uma determinação biológica, atávica, não haveria alternativa. Nós, seres humanos, somos inclusive capazes de romper com a ideia, e direito estabelecido em nossa legislação, de legítima defesa, pois podemos, conscientemente, ficar quietos enquanto alguém nos machuca.
Uma vida boa em instituições justas
Somos livres para fazer escolhas e isto parece ótimo à primeira vista. Mas quanto às escolhas incorretas que fazemos?
M.S.C. – O problema é que ainda somos um animal biocida em relação à vida em geral e à nossa própria vida, capazes de fazer o que já fizemos no passado e continuar criando, no século 21, com base em nossas lógicas ocidentais, as quais infelizmente os chineses aprenderam conosco, a fazer megalópoles extremante biocidas onde nos habituamos a um ar apodrecido, ao rio apodrecido, à relação de convivência apodrecida. Nós nos habituamos, enquanto coletividade, ao putrefato, mas podemos nos habituar a uma nova realidade, onde predomina o perfume das flores, o abraço fraterno, a solidariedade sincera. Não podemos perder de vista que nossa ciência e filosofia são gregas, nosso direito é romano, mas a nossa moral é judaico-cristã. Ela parte do principio da escolha. Na lógica do judaísmo herdada pelo Ocidente, Adão e Eva fizeram o que fizeram porque assim o quiseram, e foram alertados quanto às consequências de sua escolha. Talvez o grande princípio da escolha, e o que vai determinar se uma conduta será ou não biocida, seja aquele colocado um dia por um autor cristão, o judeu Paulo, que disse na primeira carta aos Coríntios da Bíblia: ‘Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm.’ Nosso desafio como civilização está em aceitar que, sim, somos seres humanos livres, mas cada um de nós não deve praticar o biocídio em relação a si mesmo, às circunstâncias e às múltiplas manifestações da vida.
Enquanto não alcançamos essa consciência coletiva, o direito nos ‘salva’ do biocídio?
M.S.C. – A intenção do direito é a justiça, a finalidade da justiça é a vida boa para todos. Um grande pensador francês, Paul Ricoeur, definiu ética, e eu adoto esta perspectiva, como a vida boa para todas e todos em instituições justas. Agora vamos separar a frase para melhor entendê-la. Vida boa é uma vida onde todos usufruem trabalho digno, socorro na doença, escolaridade completa, sexualidade saudável, religiosidade livre, moradia adequada, lazer não alienante. E se essas condições não são para todos e todas, então não se trata de qualidade de vida e sim de privilégios. A última parte, instituições justas, são aquelas que protegem a vida boa para todas e todos. A tarefa do direito é proteger a vida boa e todas as vezes que deixa de fazê-lo, mesmo tendo por base uma norma legal, passa a ser uma instituição injusta. Portanto, temos dois caminhos na convivência humana para viver a vida boa: a lei, e suas consequentes formas de cuidado ou repressão, e o convencimento por meio da educação. Ambos são validos. Um exemplo concreto é que, em 1996, a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança foi regulamentada na capital paulista com multa para quem desrespeitasse a norma. Hoje, acho que 90% das pessoas não pensam na multa quando colocam o cinto. É um gesto automático de segurança. A lei é a possibilidade de criar constrangimentos ao biocídio, mas trata-se de um processo mais custoso que o do convencimento. O adequado é que as pessoas tenham convicção em relação ao não-biocídio, mas enquanto todas e todos não a adotam, é preciso, sim, de leis que garantam a punição e a recusa à complacência que fere a vida. Outro aspecto que muita gente não aprecia corretamente, mas eu acho muito especial em nosso país, desde 1988, é a atuação do Ministério Público, seja trabalhando na área ambiental, seja no campo dos direitos coletivos e difusos ligados ao consumidor, à proteção da infância e da adolescência, a atenção ao idoso, à discriminação racial. Tudo isto contribui para termos uma vida boa para todas e todos em instituições justas.
Desespero entre os jovens
O crescente consumo de drogas, especialmente entre os jovens, é uma manifestação dramática do biocídio em nossos dias. A repressão por meio de leis mais duras é o melhor caminho?
M.S.C. – Existe uma percepção rasa e parcial no enfrentamento desse problema, regida pelo pensamento de que é ‘mais fácil baixar o rio que levantar a ponte’. Se assim fosse, o país com o maior sistema prisional do mundo, os EUA, onde há em alguns estados a pena máxima da perda da vida, teria uma facilidade maior na resolução desse problema. É preciso não perdermos de vista que, hoje, boa parte dos jovens se encontra pressionados por uma sociedade adulta que os desconsidera. O psicanalista Contardo Calligaris disse certa vez que parte dos jovens de classe média se assemelha a ‘adultos em férias’. Eles vão à lanchonete, ao cinema, passeiam, viajam, só não trabalham. Por outro lado, nossa sociedade de consumo impulsiona o jovem a supor que a felicidade que ele possa sentir ou ter na vida é estar na posse material. Uma sociedade como a nossa, que faz publicidade associando o heroísmo do esporte ao consumo da bebidas alcoólicas, algo que faz jovens de 12 a 20 anos, cujas mentes estão em formação, supor erroneamente que a ascensão social é obtida pelo consumo de álcool. Pior: a sociedade adulta diz hoje para os jovens que, para eles não haverá futuro, não haverá meio ambiente, não haverá trabalho e não haverá segurança. Também tenta convencê-los de que eles não têm infância, que a música que eles gostam não passa de barulho, que as suas roupas são andrajos, que a sua comida é porcaria. Estou dizendo a um humano em formação que ele não tem história. Isso provoca uma sensação de desespero muito grande entre os jovens, o que faz com que muitos escolham viver o presente até o esgotamento.
Confiar na seriedade da fonte
Aí entram as drogas, a obsessão por corpos de formas perfeitas, a busca do enriquecimento veloz por meio do envolvimento em atividades criminosas…
M.S.C. – Os jovens fazem tudo no limite máximo. Não por acaso estamos tendo um aumento no campo epidemiológico da população a partir dos 15 anos com problemas cardiológicos. Soma-se a isso a erotização precoce veiculada pela mídia e seu grave impacto na educação, pois meninas grávidas deixam a escola e seus filhos têm um risco maior de seguir o mesmo caminho. Temos esses dois pólos de pressão: o que diz ao jovem que ele não terá futuro e nosso sistema, que lucra com sua ansiedade e o impulsiona com sopros de consumo para o precipício. É preciso cuidado com o cinismo reinante que afirma estar esta juventude perdida. Quando um jovem alcoolizado ao volante provoca uma colisão com vítimas fatais, muitos usam o fato para defender penas mais rigorosas, além de levantar bandeiras como a responsabilização criminal a partir dos 16 anos ou menos. Este jovem também é uma vítima, não uma vítima em absoluto, pois ele tem consciência de seus atos, mas ele ainda é um ser em formação. Os jovens não nascem prontos. Alguém tem que se responsabilizar por eles até que sejam adultos.
É certo afirmar que inauguramos a Era do Conhecimento graças à internet?
M.S.C. – As tecnologias digitais são ferramentas que possuem uma instantaneidade e um poder de multiplicidade na divulgação de ideias, denúncias, manifestações artísticas e outras formas de livre expressão do pensamento realmente inéditas na história humana. O leigo hoje só existe entre aspas, pelo menos entre aqueles que têm acesso à internet. Não há mais inocência ou ignorância completa como existia antes. Evidente que os conteúdos acessados não transformam o internauta em um profissional da área, mas quem tem acesso a plataformas digitais vai melhor preparado, por exemplo, a uma consulta médica ou ao advogado. Nem por isso é correto afirmar que estamos na Era do Conhecimento. A Era do Conhecimento existe desde o processo de hominização, de 40 mil anos para cá com o advento do homo sapiens sapiens. Não há como supor que inventamos a roda ou aprendemos a fazer fogo ou extrair e fundir metais sem ter conhecimento. A história humana é a história do conhecimento. O que podemos afirmar é que vivemos a era da informação instantânea e altamente acelerada na disponibilidade de dados. É uma coisa inédita, mas já vivemos um momento anterior assemelhado a este, no Ocidente do século 15, com a invenção do tipo móvel pelo ourives alemão Johannes Gutenberg. Mais: a tecnologia digital strictu sensu não oferece confiabilidade à informação hoje disponível na internet. Deste ponto de vista, a mesma faca que fere serve para descascar uma laranja. As pessoas têm que confiar na seriedade da fonte, tal qual livros em profusão em uma livraria. O que leva o leitor a escolher um em detrimento do outro é o seu conhecimento prévio sobre a legitimidade do autor.
Quero? Se quero, devo? E se devo, posso?
Os avanços tecnológicos e científicos desafiam nosso modo de ver e pensar a vida, haja vista experiências como a clonagem, a eutanásia e a produção de sementes transgênicas, só para ficar em alguns exemplos.
M.S.C. – O grande pensador Francis Bacon, no século 16, criou a frase ‘Saber é poder’. As discussões hoje travadas em torno de procedimentos, como a clonagem, são um convite, individual e coletivo, para pensarmos seriamente sobre a serviço de quem está o poder do saber e se esse saber precisa de mecanismos de controle social. Até 1990, antes da entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, quem detinha o pátrio poder tinha autorização legal para espancar uma criança, algo inadmissível hoje em dia. No Renascimento, a abertura de cadáveres iniciada pelo anatomista André Vesálio era um procedimento proibido porque era tido como violador da vida. Só a partir do século 18 a eutanásia passou a ser uma questão polêmica. Antes desse período, quem quer que tivesse conhecimento de alguém que sofresse, não tinha dilemas morais: ajudava a pessoa a morrer. Certo é que vamos sempre estar diante de dilemas e serão mais tranquilamente ultrapassados quanto mais sólidos forem os princípios que tivermos para responder a três perguntas fundamentais: Quero? E se quero, devo? E se devo, posso?
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Jornalista, São Paulo, SP