Agora é lei: homem não pode mais matar mulher e sair impune por estar defendendo sua honra. Homem não pode estuprar menor de idade e se livrar porque arranjou casamento para ela. E mulher honesta não vai ser, para efeitos legais, apenas a mulher fiel.
A partir de 8 de março, quando o presidente Lula assinar essas modificações do Código Penal, a mulher fica um pouco mais igual aos homens, pelo menos aos olhos da lei.
A lei, aprovada no Congresso Nacional, altera o Código Penal e revoga o adultério do capítulo dos crimes contra o casamento. Revoga o crime de sedução (que previa pena de reclusão de dois a quatro anos para quem seduzisse mulher virgem, com menos de 18 e maior de 14 anos). Acaba com o perdão para os crimes contra os costumes (como o estupro e o assédio sexual) pelo casamento do agente com a vítima, ou pelo casamento de terceiros com a vítima. E retira o qualificativo ‘honesta’ da expressão mulher honesta prevista em vários artigos.
Ao dedicar apenas meia página à notícia, o jornal O Estado de S.Paulo (27/2) perdeu a chance de uma grande matéria. Sob o chapéu de ‘Novos Tempos’, diz a primeira frase do lide do texto (‘Nova lei derruba defasa da honra’, pág. A15):
‘O crime de adultério, que inspirou romances célebres como Madame Bovary, de Gustave Flaubert, e O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, vai acabar no Brasil.’
Diz mais, no sublide:
‘Foi com base no crime de adultério previsto no Código Penal, em vigor desde 1940, que durante décadas o homem que matava uma mulher acabava se livrando da cadeia. Um dos casos mais famosos foi o assassinato da socialite mineira Ângela Diniz pelo playboy Doca Street, em dezembro de l976.’
No mais, a matéria se resume à palavra do deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ), relator do projeto.
O jornal poderia ter dito, por exemplo, que leis semelhantes só estão em vigor em países como a Argentina, Egito, Bangladesh, Irã, Jordânia, Líbano e Turquia. E que a ONU, em 2002, denunciou o Brasil por crimes de honra.
De acordo com um relatório da ONU sobre violências contra as mulheres, não é apenas no mundo islâmico que se comete esse tipo de crime, em que o marido mata a mulher que cometeu adultério e acaba sendo absolvido na Justiça por estar defendendo a sua honra. ‘Isso induz à idéia de que a mulher é propriedade do marido e a honra é um aspecto de autodefesa’, avalia Radhika Coomaraswamy, autora do relatório da ONU sobre Violência contra a Mulher, .
Hora de rever posições
Vamos esperar que, com a mudança na lei, mude também a atitude da imprensa quando o assunto são direitos femininos, especialmente a violência contra mulheres.
No caso de Ângela Diniz, o grande destaque da cobertura na época do primeiro julgamento não foi o crime em si, mas a presença do jurista Evandro Lins e Silva e a defesa que fez do assassino. Uma defesa tão dramática que acabou virando peça de estudo para estudantes de Direito. Na defesa, Doca Street é o moço de bons antecedentes e Ângela Diniz a mulher fatal, que encanta, seduz, domina. ‘Mulher que leva o homem, às vezes, à prática de atos em que ele não é idêntico a si mesmo, age contra a sua própria natureza’, disse Lins e Silva.
O julgamento, realizado em Cabo Frio (RJ), foi anulado. Dois anos depois, Doca Street foi condenado a 15 anos de prisão. Sem a presença de um grande jurista fazendo sua despedida da corte, a notícia foi tratada, pela imprensa, com a mesma sobriedade dedicada a qualquer outra notícia policial do jornal.
No caso mais recente, o assassinato da jornalista Sandra Gomide pelo colega e namorado Antonio Pimenta Neves, então diretor de Redação do Estado de S.Paulo, a postura da imprensa foi pior ainda. Como à época mostrou este Observatório na época [edições de 20/8/2000 e 5/9/2000; veja Edições Anteriores em (http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/ed_anteriores.asp)]. Enquanto a internet e a televisão davam destaque ao crime, a mídia impressa agia com uma discrição quase próxima da omissão. E as revistas femininas, que poderiam ter explorado o tema com grandeza, também dedicaram pouco destaque ao assunto.
Quem sabe agora, quando não há nenhum crime em discussão, repórteres e pauteiros aproveitam um dia mais fraco para tratar do assunto com mais detalhes. Podem mostrar as histórias das mulheres vítimas dos preconceitos legais e de seus assassinos, que envolvem playboys, juristas, jornalistas e tantos outros homens bem-sucedidos e que dão ibope quando seus nomes aparecem na imprensa.
Seria, pelo menos, uma forma diferente de falar do Dia Internacional da Mulher – que a partir de agora, pelo menos no Código Penal, será honesta mesmo quando infiel. Da mesma forma que seus maridos e companheiros continuavam honestos se cometessem adultério.
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Jornalista