Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A propaganda eleitoral vai ao paraíso

À medida que se aproxima o dia da largada, roncam motores, os ânimos e as ações judiciais no aquecimento da corrida eleitoral. Dia sim, dia não, um partido denuncia outro por propaganda antecipada. Às vezes o Judiciário dispara multas, outras vezes, não. O clima é um pouco infantilizado, como se o tribunal fosse um inspetor de alunos e os candidatos e seus apoiadores, moleques travessos, mas, no fundo, gente boa.


Ninguém leva a sério, nem o presidente da República. Fora desse teatrinho escolar, a grande indústria da propaganda eleitoral ilegítima corre solta, como se fosse um dado da natureza. Essa indústria colossal não precisa esperar bandeira de largada nenhuma. Avança a toda a velocidade, há muito tempo, e consome mais dinheiro público do que muito programa social.


O nome dessa campanha fora de hora é ‘publicidade de governo’. Alguns chamam a isso de ‘comunicação pública’, numa ofensa ao vernáculo e ao princípio da impessoalidade, mas deixemos de lado a confusão semântica. A publicidade de governo é aquela que, sob o pretexto mal disfarçado de informar ao cidadão que vão inaugurar daqui a alguns meses ou anos uma nova estação de metrô ou que o Brasil agora é respeitado lá fora, existe apenas para martelar a mensagem de que o governo (estadual, municipal ou federal, tanto faz; nisso, todos eles são praticamente idênticos) é fantástico, mudou a história do povo, trabalha muito, desinteressadamente, e deveria continuar. De preferência, para sempre. Toda e qualquer propaganda de governo, sem exceção, existe para promover quem governa – mesmo que não pronuncie expressamente o nome de quem governa – e, entre nós, está no ar o tempo todo, ininterruptamente. É o prolongamento da propaganda eleitoral propriamente dita. E, pior ainda, é financiada pelos cofres públicos.


Promoção partidária


Segundo levantamento do Grupo de Mídia de São Paulo – que leva em conta o preço de tabela, sem desconto, de todo comercial que é veiculado –, os chamados ‘serviços públicos e sociais’, nos quais normalmente são classificadas as campanhas governamentais, saltaram de R$ 2,26 bilhões em 2007 para R$ 2,77 bilhões em 2008 (os dados de 2009 ainda não foram consolidados no site da entidade).


Para ter uma ideia do gigantismo desses números, leve-se em conta que, de acordo com as estimativas da mesma instituição, o valor total do mercado publicitário brasileiro fica na casa dos R$ 23 bilhões. Leve-se ainda em conta que as estatais, como Caixa Econômica Federal e Petrobras (que, juntas, anunciam mais de R$ 1 bilhão por ano), não entram nesse montante. Leve-se em conta, por fim, que essas cifras se expandem sem a menor cerimônia. Só o governo paulista passou de R$ 59,3 milhões em 2007 para R$ 158,3 milhões em 2008.


Outro dado revelador é que a linguagem das campanhas governamentais é rigorosamente igual à adotada pelos partidos durante o horário eleitoral. Não raro, as equipes de produção são as mesmas. Também no plano estético, uma coisa é a continuação da outra. Governos estão fazendo propaganda eleitoral de si mesmos durante o ano todo, mas isso não incomoda ninguém. Ao contrário, ela é defendida por muitos. Os defensores dessa distorção tão brasileira argumentam que campanhas de governo não fazem propaganda pessoal da autoridade e, portanto, nada de errado com elas. O problema é que elas fazem, sim, promoção partidária – e até mesmo de pessoas. E fazem isso contra o melhor espírito de toda legislação democrática.


Disputa ideológica


Lembremos o que estabelece a Constituição federal:




‘A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos’ (artigo 37, XXII, § 1.º).


Fiquemos agora apenas com o exemplo do governo federal. Toda campanha, toda placa, toda comunicação que ele põe no ar traz lá aquele logotipo: ‘Brasil, um país de todos.’ Não se trata do brasão da República, um símbolo impessoal, mas da marca de fantasia de um governo em particular, o governo Lula. É um logotipo tão associada à identidade do governo atual que substitui, com toda a clareza, a fotografia do próprio governante.


Ninguém tem dúvida, aliás, de que aquilo é a assinatura do governo Lula. Pode-se alegar que é uma personalização indireta, mas não se pode negar que, para efeitos de identificação, ela é totalmente eficaz. Em síntese, a Constituição veda ‘símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades’, mas é como se não vedasse coisa alguma. Só o que preocupa os árbitros da corrida que, ao menos no calendário oficial, ainda está para começar é se fulano ou beltrano falaram o nome da candidata A ou do candidato B num palanque em não sei onde: ‘Ah, isso não pode.’


Foi assim que a República brasileira naturalizou um conceito que não faz o menor sentido republicano: o conceito de que o dinheiro público pode ser gasto, aos bilhões, para convencer a sociedade de que o governo é bonzinho e precisa ser reeleito, por favor. Em nossa cultura política, nós, brasileiros, passamos a ver como natural a prática de massificar a opinião de alguns (os que estão no comando do Executivo) com o dinheiro de todos (que não estão no Executivo e nem sempre concordam com a opinião dos que lá se encontram) para combater a opinião dos que discordam (que são igualmente cidadãos, mas cujas opiniões, na prática, são menos prestigiadas e menos valorizadas do que as opiniões dos que concordam). Recursos do Estado entram diretamente na disputa ideológica. Cadê a República?


Enquanto isso, roncam os motores, os ânimos e as ações judiciais irrelevantes.

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Jornalista, professor da ECA-USP