Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Volta pra tua terra, pá!

Será xenofobia? O fato é que nos últimos tempos têm havido, na comunicação social portuguesa, muitas referências aos ‘brasileiros’. E sempre com um indisfarçado tom de estigmatização. Os casos são inúmeros.

** Caso 1: a cronista de um grande semanário comenta, em jeito de ironia, as escolhas dos marqueteiros ‘brasileiros’ que trabalharam na campanha do candidato a primeiro-ministro Pedro Santana Lopes, derrotado nas eleições de 20 de fevereiro;

** Caso 2: outra revista nota que, no último debate televisivo para as eleições, o mesmo Santana Lopes esteve acompanhado de cinco pessoas, quatro referenciadas pelos nomes e a outra identificada apenas com um assessor ‘brasileiro’;

** Caso 3: ao analisar os insucessos do Futebol Clube do Porto no campeonato nacional, o comentarista de uma emissora de televisão joga ao ataque e diz que a culpa é dos ‘brasileiros’ enfeudados no clube;

** Caso 4: agência de publicidade veicula um anúncio para recrutar um designer e diz que os candidatos nem precisam ter muita criatividade: a condição é não ser ‘um gênio ‘brasileiro’ em plágio e idéias gastas’. Quer dizer, o sujeito pode até ser fraco como profissional, mas não pode vir dos trópicos;

** Caso 5: o repórter de televisão queixa-se, ao vivo, do operador de câmera ‘brasileiro’ que lhe estaria a tapar a visão num jogo de futebol;

** Caso 6: isso tudo sem falar no clássico dos clássicos: os professores universitários (inclusive nos cursos de Comunicação) que, ao indicarem livros, fazem sempre a ressalva: há uma tradução para o português, mas é feita por um ‘brasileiro’. Então, os alunos empinam o nariz e fazem um infalível arzinho de nojo.

Marqueteiros, jogadores de futebol, publicitários, operadores de câmera ou intelectuais. Era fácil ver apenas profissionais a desempenharem uma função. E, como seria lógico, analisar se esse trabalho é bom ou malfeito (vale dizer que são atividades em que os brasileiros se destacam). Mas, não. É preciso deixar claro que eles são ‘brasileiros’. É assim que a palavra ‘brasileiro’, usada insistentemente em tom negativo, começa a tomar a forma de estereótipo. E o estereótipo é irmão do preconceito.

Tão longe, tão perto

O fato é que há cada vez mais brasileiros em Portugal (já superam os 100 mil, o que representa 1% da população do país) e isso acaba por provocar algumas ‘acomodações’ no mercado de trabalho. E em tempos de crise econômica esse fato adquire alguma expressão. Mas o povo português não reclama, salvos casos pontuais e pouco significativos.

O problema é que a reprodução desse estigma do ‘brasileiro’ muitas vezes é feita por pessoas cultas e influentes que, em teoria, deveriam ser avessas a esse tipo de atitude. É a forma refinada que as elites pensantes – e com espaço na mídia – encontram para substituir o popular ‘volta para a tua terra, pá!’.

Seria possível tentar encontrar inúmeras explicações para o fato, mas basta apenas uma. É uma questão de geo-exclusão. É a nossa incapacidade para olhar o outro ‘terceiro-mundista’ (em que pese a carga ideológica da expressão) como um igual. Há também um certo atavismo que remete à nossa história colonial. Nós, portugueses, somos os colonizadores. Nós, portugueses, somos um povo europeu, culto e moderno. E não podemos agora ser colonizados por essas hordas de botocudos que vêm do tal terceiro mundo.

O pior é que muitos desses brasileiros não se contentam com o lugar que lhes reservamos nas obras da construção civil. E não gostamos do estrangeiro que nos olha nos olhos. O problema (filosófico, bem visto) é que olhar o outro obriga a olhar para nós próprios. Um exercício que traz à tona aquela realidade que estamos sempre a varrer para debaixo do tapete. Não somos assim tão modernos. Nem tão cultos. Parecemos uma espécie de semi-periferia na Europa. De colonizadores do passado passamos a colonizados culturalmente pelas grandes potências. E chegamos à conclusão de que não estamos assim tão longe do terceiro mundo.

É isso o que incomoda nos estrangeiros: eles nos obrigam a olhar para nós próprios. E nem sempre gostamos do que vemos.

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Jornalista, doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa, cronista de A Notícia (Joinville, SC)