Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A morte nos disputa

O inesquecível Wilson Bueno (1948-2010) sentiu, na carne, a violência que sempre abominou e partiu, a cavalo, como seu tio Roseno, para habitar as paragens banhadas por um mar de cristal, em meio a espécimes estranhos duma zoologia fantástica, como a idealizada por Jorge Luis Borges, decrépitas marafonas, vagaus inúmeros das noites trepidantes daqui e d´além-mar, figurantes duma trama romanesca que lembra, sem o mínimo apelo à paráfrase deslavada, o mesmo apuro literário destilado com maestria por João Guimarães Rosa e Franz Kafka.

Wilson mereceu de Leo Gilson Ribeiro, um dos nossos maiores críticos literários, consagradora distinção quando do lançamento de Mar paraguayo (1992):

‘O eixo Rio-São Paulo foi outro muro (ou mito) a desmoronar junto com o de Berlim. Ou mesmo antes dele, Curitiba já lançava um míssil literário expresso na criação revolucionária de Paulo Leminski. Agora, Jamil Snege e Wilson Bueno dão continuidade a esse Renascimento localizado em terras paranaenses. Wilson Bueno, da cidadezinha de nome indígena, Jaguapitã (que quer dizer ‘cachorro vermelho’ em guarani), tece um texto delicadíssimo, em que a poesia e a prosa estão entremeadas, entrelaçadas, confabulam.’

Um ‘boteco sórdido e esplêndido’

O crítico dizia com olhar clínico que ‘o arisco lobisomem curitibano’ uiva em diálogo com o Tatarana roseano, coaxa com Manuel Bandeira, rege orquestras inaudíveis com Villa-Lobos’ e ‘pega na mão de Tarsila para recuperar as paisagens caipiras do interior de Minas e São Paulo’. Aliás, foi Alice Ruiz quem melhor definiu o autor de Bolero´s Bar: ‘Bueno é um tradutor de tradições para a linguagem da contemporaneidade’. A estreia literária tardia deu-se, exatamente, com esse livro apresentado à época (1986) por Paulo Leminski para a Criar Edições, como ‘um bazar dos dias’ que ‘tudo arrasta em seu ímpeto de espantado deslumbramento diante das coisas e da vida, fracasso e triunfo, tormento e júbilo, Wilson e Bueno’. É preciso lembrar que em momento oportuno, a Travessa dos Editores, de Fábio Campana, relançou o Bueno´s Blues Band & Seus Boleros Ambíguos (a sacada é de Leminski), acrescido do Diário Vagau, em primorosa apresentação datada de 2007.

Registros da realidade vazados em escritura ficcional, ‘obsessivamente reescritos’, duas décadas mais tarde, o próprio autor a eles se referia carinhosamente como ‘retratos do artista quando jovem’, em delicado debique a Leminski, que o conhecia desde a alegre efervescência curitibana do festival de Woodstock e o carimbava dono e freqüentador de um ‘boteco sórdido e esplêndido, que abre quando pode e fecha quando não é mais possível’.

Saudade e admiração

Para honrar devidamente a memória desse extraordinário artista da palavra, atrevo-me a repetir o que ele mesmo observou sobre a morte de Valêncio Xavier: ‘Espero, senhores, que os grandes jornais e as revistas especializadas escrevam no mínimo um alentado dossiê sobre a vida e obra de Valêncio Xavier, um dos mais inventivos prosadores surgidos no Brasil dos últimos tempos, recém-falecido aos 75 anos’. À exceção da imprensa local, escrevia Bueno na eletrônica Sibila, pouco ou quase nada se publicou sobre a importância do escritor paranaense. Espero que o clamor de Bueno não tenha o mesmo destino conferido ao autor de o Mez da Grippe.

Folheio, ao acaso, Bolero´s Bar e deparo, não sem certo sobressalto, com um insólito epitáfio: ‘Agora é evadir-se. O mundo está completo e não nos precisa mais, mano. A tarde está completa e nos dispensa, mano. A morte nos disputa, abutre. Cansamos.’ Wilson não sobreviveu para ver o inverno tão presente em sua construção literária: ‘O frio de julho/desnuda os ipês da praça/neblina no escuro/velho vento na alameda/dobra esquinas, chora seda.’

Enfim, o grande escritor paranaense não é mais. Restam indeléveis e marcadas a fogo na dor compungida de seus muitos amigos, a saudade e a admiração: ‘Há menos pássaro no ar do que o sonho pisado de um homem’ prognosticou certo dia, carregado de razão.

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Jornalista