Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O doce machismo do portal Ego

A mídia de celebridades avançou muito nos últimos 20 anos, principalmente depois que a revista Caras foi lançada como uma novidade editorial no Brasil, que é a transformação do colunismo social dos jornais em uma revista inteira. Veio a internet e novas mídias como as comunidades sociais (Orkut, Twitter, Facebook), os blogs e até sites de vídeos (YouTube) que transformaram de vez o processo da busca da fama. Sem falar dos reality shows, que catapultam anônimos para a ‘celebridade’ fácil.

Aliás, soa estranho esse termo ‘celebridade’ numa época em que, no entretenimento, o descartável e o efêmero querem trocar de papel com o relevante e duradouro. Vem à mente o caso do prestigiado compositor Edu Lobo, que há 45 anos tinha a popularidade que hoje é alcançada por um Luan Santana da vida, agora esquecido e a depender de uma entrevista com sua ex-nora Ana Luísa Guimarães, no RJ TV, para divulgar seu trabalho.

Vídeos no YouTube, Edu Lobo possui aos montes, mas ter vídeo no YouTube só é novidade quando se trata de uma Stefany Absoluta (a da melô do ‘Cross Fox’, espécie de ‘Fuscão Preto’ do século 21, envolvendo também a marca Volkswagen) ou de qualquer ‘nova sensação’ do brega-popularesco.

Numa época de TV paga, temos várias mídias transmitidas pela internet e toda uma nova realidade que desafia muitos analistas da Comunicação. As Organizações Globo, tão associadas ao tendenciosismo político-midiático, também entraram para o circo do entretenimento absoluto, sobretudo em veículos que tentam vestir o grotesco sob a capa de cult, que são o canal pago Multishow, a revista Quem Acontece e, sobretudo, o portal Ego.

Paraíso das ‘boazudas’

O portal Ego tornou-se uma das cartas da manga tendenciosa das Organizações Globo, porque seu nome, extremamente banal, é camuflável nas buscas pelos catálogos virtuais tipo Google e Yahoo!. Se alguém quiser analisar os mecanismos da grande mídia usando como palavras-chave, por exemplo ‘Partido da Imprensa Golpista’ + ‘Ego’, terá mais facilidade para ver o vocábulo ‘ego’ citado em outro contexto, como, por exemplo, quando algum analista da grande mídia cita determinado psicólogo que lhe oferece subsídios para sua abordagem midiática.

Com isso, o mimetismo midiático foi praticamente realizado. E, como a crítica da grande mídia privilegia os fatos políticos, o inocente ‘entretenimento’, no qual valores associados ao grotesco, à vulgaridade e ao descartável, também manipulam os instintos do grande público, mas de forma mais sutil do que o tendenciosismo jornalístico, não despertam desconfiança nem alarme.

Pena, porque o entretenimento, que no Brasil representa uma indústria milionária da mediocridade cultural, seja na música, no noticiário, nos programas televisivos etc, simbolizados por uma filosofia da breguice, ora escancarada, ora travestida de ‘chique’ (como no caso dos ídolos popularescos que ‘visitam’ o Fausto Silva todo domingo), que promove a degradação de valores culturais, morais, artísticos e ideológicos que contribuem para o conformismo público bem mais do que as pregações de Veja contra os movimentos sociais.

O portal Ego tenta transformar os valores do brega-popularesco em novidades cult, sendo desaconselhável sua consulta para quem quiser procurar algum novo fenômeno de vanguarda cultural. A reboque disso tudo, está na constante badalação das chamadas ‘boazudas’, mulheres que se tornam mais famosas pela exploração do corpo. Se não fossem os melindres do discurso politicamente correto, as ‘boazudas’ seriam exatamente sinônimo de mulheres-objeto.

A ‘fórmula de sucesso’

Pois o portal Ego é um dos veículos dessa mídia machista que explora o corpo feminino de forma vulgar e exagerada. É expressão da famosa transformação da figura da mulher, pela indústria do entretenimento, em ‘mercadoria’, sobretudo para o consumo pela demanda masculina.

Desde que veio o fenômeno Carla Perez – espécie de ‘Leila Diniz às avessas’, invertendo os conceitos de ‘emancipação’ feminina para a vulgaridade abjeta –, a mulher-objeto tenta ser reciclada pela mídia conservadora como um meio de perpetuar os valores machistas que, se não travam a luta da mulher contra sua condição subordinada, tenta promover a exploração feminina como ‘brinquedo sexual’ do imaginário masculino num contexto pretensamente ‘libertário’.

Os pretextos chegam a ser bem conhecidos. ‘Fulana vende seu corpo para a mídia, mas ela dá de comer para sua mãe e seus muitos irmãos’, é a alegação mais comum. Se a mulher-objeto é funkeira e interpreta letras que falam mal dos homens, ela vira ‘feminista’ mesmo cumprindo papéis grotesco-eróticos bem ao deleite do público machista.

O portal Ego tornou-se a última definição nessa manipulação ideológica, que disfarça o culto machista à mulher em ‘fórmula de sucesso’, em suposta ‘emancipação’ feminina. Tenta inverter o real significado, aproveitando o contexto politicamente correto em voga na mídia brasileira.

Convertidas em ‘divas absolutas’

Com isso, as chamadas ‘mulheres frutas’ do funk carioca, símbolo da mais escancarada e grosseira vulgaridade, passam a serem promovidas como ‘emancipadas’. Supostamente desejadas pelos homens, elas vivem num estranho celibato que, no entanto, é sob medida para garantir a fantasia do público masculino, sem a sombra de algum outro homem.

As ‘mulheres-frutas’ seguem a trilha das dançarinas do É O Tchan, com direito à ‘dança da boquinha da garrafa’, que o funk carioca relançou como se fosse uma ‘dança folclórica’, como uma ‘Dança do Tamanduá Africano’ às avessas. A ‘Dança do Tamanduá’ foi, no filme Namorada de Aluguel (1987), estrelado por Patrick Dempsey (o nerd que se transformou no galã de Grey´s Anatomy), uma dança folclórica que o personagem de Dempsey usou para mostrar no baile de sua escola, e que então virou modismo dançante. O funk carioca, tal como um pop dançante metido a besta, transformou seus rebolados grosseiros em ‘dança folclórica’ para seduzir os turistas.

Mas, além das ‘mulheres-frutas’, há as ‘boazudas’ do Big Brother Brasil, além de exemplos isolados, como os da modelo Nana Gouveia. Todas elas, no entanto, representam o estereótipo da mulher-objeto convertido, pelas ‘mãos’ de Ego, em ‘divas absolutas’, num tempo em que as Sheilas do É O Tchan se aposentaram do posto de ‘boazudas’, praticamente casadíssimas e em processo de formação de família.

Falsa impressão de ‘emancipação’

Através do Ego, as ‘boazudas’ simbolizam o ideal de ‘curtição a qualquer preço’, que, dependendo do contexto, podem ser tanto as noitadas de casas noturnas animadas por DJs quanto os ensaios em quadras de escolas de samba.

Qualquer banalidade é exaltada, de forma repetida, insistente. Seja o vento levantando a saia de uma ‘mulher-fruta’, seja Nana Gouveia ‘pagando calcinha’ num evento, sejam todas elas combinando shorts curtos com camisas de times de futebol, as ‘boazudas’ sempre têm que cumprir esse papel, todo santo ano, de preferência (segundo as intenções de Ego) até o fim dos tempos.

Há também o caso da ‘pegadinha’ de Geyse Arruda, a ‘polêmica’ universitária da Uniban, definida pelo jornalista Artur Xexéo como uma genérica do Big Brother Brasil, ou seja, uma ‘anônima’ que alcançou a fama de forma fácil e supostamente controversa. Geyse, pelo seu vestido ‘sensual’, acrescentou esse nome ao espetáculo das ‘mulheres gostosas’ que a mídia faz questão de manter para distrair a plateia desprevenida de homens.

É um contexto de exploração da mulher como objeto sexual que a mídia retrabalha e realimenta, buscando neutralizar os avanços da luta feminista ante o grande público. É como se, de acordo com o discurso da mídia, as mulheres-objeto nada mais podem fazer porque as feministas já fizeram. Isso esconde uma grande hipocrisia.

Essa hipocrisia consiste em transformar a mulher-objeto numa falsa feminista, contraditoriamente tão desejada pelos homens quanto solitária no amor, talvez para tentar dissociá-las da imagem de algum suposto parceiro. Daí os namoros-relâmpagos de funkeiras e BBBoazudas, ou os affaires entusiasmados que murcham antes do primeiro beijo. E, na medida em que se enfatiza o fato de que as ‘boazudas’ vendem seus corpos para a mídia, o aspecto assalariado dá uma falsa impressão de ‘emancipação’ das mulheres-objeto.

Personalidade, inteligência, simpatia

Só que elas podem ser independentes financeiramente, mas não são ‘emancipadas’. Elas continuam fazendo o papel que o machismo determina para elas, sem avançar muito na superação de suas condições inferiorizadas. As ‘boazudas’, por mais que tentem alguma coisa diferente, continuam ingênuas, superficiais, submissas.

O que dizer das ‘boazudas’ do exterior, como Pamela Anderson e Victoria Silvstedt, que estranhamente até envelheceram precocemente, como se suas projeções como musas sexuais perdessem o sentido até no desgaste facial?

As transformações sociais ocorridas no exterior, que cada vez mais valoriza a mulher pela inteligência e simpatia, bem mais do que seus ‘dotes físicos’ (que são valorizados de forma discreta, sem o exibicionismo das ‘boazudas’), inspiraram até um portal dedicado às mulheres famosas, o AskMen.Com, a fazer uma votação sobre as 99 mulheres mais desejáveis do ano.

Na edição de 2009, os organizadores do AskMen deixaram claro que os critérios de escolha das mulheres eram ligados à personalidade, à inteligência, simpatia, desenvoltura e classe, embora a beleza facial e corporal sejam virtudes indispensáveis. Também foram considerados critérios como o das mulheres famosas que evitam fazer escândalos e que não exibem suas formas físicas a qualquer preço.

Espetáculo da vulgaridade e do grotesco

A votação acabou por eleger como primeira colocada a atriz canadense Emmanuelle Chriqui, do seriado Entourage. Embora faça sessões sensuais mostrando sua invejável forma física, Emmanuelle Chriqui é reconhecida pelo seu jeito simples, pela personalidade graciosa e simpática, e que em vários momentos se veste de forma contida e discreta.

Mas, fora da lista do AskMen, jovens atrizes como Emma Watson (da série filmada Harry Potter) e Dakota Fanning, que tempos atrás eram atrizes mirins, surpreendem por difundir um tipo moderno de mulher que reafirma e usufrui as conquistas do feminismo, que é um tipo marcado pela inteligência, pela desenvoltura, pelo charme, pela classe e sensibilidade, e pela capacidade de opinar sobre vários assuntos, lidar com as pressões da vida com mais prudência e sensatez, ter autocrítica e responsabilidade.

Este tipo de mulher moderna busca valorizar seu corpo, sem transformá-lo em mercadoria nem em brinquedo para a fantasia dos machistas. Porque aqui a mulher é mais do que um corpo, é uma pessoa que pensa, que age por conta própria, que tem suas próprias opiniões e decisões.

Como integrante do circo conservador da grande mídia ‘global’, o portal Ego, como outros veículos similares, despreza essa realidade da mulher moderna que nem é tão nova assim, mas que se aperfeiçoa através até mesmo de antigas atrizes mirins transformadas em mulheres emergentes. Porque essas mulheres têm relevância, valor, mas (ou talvez, por isso mesmo) são completamente inúteis para o ‘EGOcêntrico’ espetáculo da vulgaridade e do grotesco.

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Jornalista, Niterói, RJ