Há situações em que o ‘Erramos’ é insuficiente, soa inadequado e parece impresso nas tintas do ridículo. Refiro-me à tradicional seção de rodapé do jornal Folha de S.Paulo. Está localizada na prestigiosa página 3, logo abaixo da seção ‘Painel do Leitor’. Com tantas indicações creio não ser necessária ajuda do possante Google para localizar a destemida seção. Pode ser curioso, mas após buscar o texto de Eliane Cantanhêde, sempre no ponto e despojado, na página 2, sigo marcha batida para o ‘Erramos’. Depois de conferir onde o jornal admite claramente que errou, sempre após as regulamentares 24 horas depois de impressa a edição.
A uma primeira vista parece agradável que o leitor disponha do espaço ‘Erramos’. Antes de tudo, é a lembrança muitas vezes impertinente que nós, humanos, somos dados a errar. E é um exercício de humildade do jornal reconhecer os próprios erros, evitando que estes parasitem nas chamadas brumas das redações. Pena que não se detecte no espaço as matérias que tiveram apuração sofrível, foram publicadas de maneira incompleta e deixaram de seguir as regras do bom jornalismo. Destas, podemos destacar a existência ou não do saudável ‘outro lado’ e, quando isso ocorre, sabemos que a gritaria está a caminho como infantaria avançando sobre campo de batalha.
Erro de displicência
Na quarta-feira (2/6/2010), considerei chegado o momento para tratar do ‘Erramos’. A edição desse dia contém cinco pequenas notas – pequenas pelo espaço visual e físico ocupado – mas cinco erros para Crasso nenhum botar defeito. A propósito, informe-se que antes de ser adjetivo, Crasso foi nome próprio. Era o general romano que integrou o primeiro triunvirato, juntamente com Pompeu e Júlio César. Era um político medíocre, ambicioso e interesseiro. Tomou a ofensiva na Síria contra os Partos, mas foi derrotado por um erro grosseiro de estratégia militar, que lhe custou a vida. Daí o significado de ‘erro crasso’.
A seguir, comentários a três dos cinco erros detectados e publicados na Folha:
**
‘Opinião (1/jun pág. A3): O erro na seção `Agenda da Semana´ da Folha Corrida, apontado nesta seção, ocorreu em 31 de maio, e não em 31 de junho.’Aqui vejo apenas duplo erro de displicência. Primeiro porque o calendário gregoriano foi promulgado pelo Papa Gregório XIII a 24 de fevereiro do ano 1582 para substituir o calendário juliano. E em todos estes séculos junho nunca dispôs de um dia a mais, ficou sempre com 30 dias, mantendo sua inveja do mês de julho seguinte que, aí sim, tem seus 31 dias. Segundo porque, sendo a edição da Folha de 1º de junho de 2010 não poderia colocar no passado evento futuro.
Não é primor de clareza
**
‘Poder (1/jun, pág. A6): Diferentemente do que informou subtítulo da reportagem `Lula libera R$ 6,6 milhões a emenda de Ciro´, o valor liberado no dia 21 de maio, mesmo dia em que o PSB anunciou apoio à candidatura de Dilma Rousseff, foi de R$ R$ 6,6 milhões, e não de R$ 3,3 milhões.’A correção aludida apenas vem confirmar a percepção que o ‘Erramos’ é desideologizado. Ora, esta a matéria-sensação para azeitar a cobertura política feita pelo jornal. O objetivo, além de semear vastos campos de suspeitas, era constranger um dos pré-candidatos ao Planalto ante a possibilidade que o balcão de favores do governo estava funcionando a contento: você amarra sua sigla partidária à minha campanha que em troca te mimo com caraminguás na casa dos milhões. Mesmo alçado a subtítulo (portanto, destaque editorial autorizado) a informação que seduz os olhos foi guilhotinada, por obra de desatenção, em 50% do pretenso escândalo.
**
‘Poder (24/mai, pág. A8) A previsão de orçamento do Bolsa Família para este ano é de R$ 13,1 bilhões, e não de R$ 1,2 bilhão, como publicado no quadro `Divulgação e propaganda´. Assim, o R$ 1,1 bilhão gasto pelo governo com propaganda, citado no quadro, equivale a 8,4% do programa.’A ordem de grandeza é formidável e, obviamente, distorce a notícia por inteiro. Quem se habilita a formar opinião após dispor de informações confiáveis sobre a gestão do governo, incorre ter opiniões movediças, aquelas que não se sustentam na realidade. Não sabemos, de acordo com a notícia errada publicada antes, qual era o percentual divulgado e que agora foi corrigido chegando a 8,4% do programa. Também o texto desta nota não é bem um primor de clareza.
Amor e ausência
É evidente que o jornal se mostra desatento ou displicente na feitura de matérias que trazem grandes cifras de dinheiro. E para isso não há reforma que resolva. Nem mesmo deixando de ser jornal do presente para ser jornal do futuro. Não é demais inferir que, a continuar com tais erros, a Folha suscita em seu leitor aquele fio de dúvida: Será que este valor está certo? Será que o que me escandaliza hoje não será objeto de publicação na seção ‘Erramos’?
Começo a pensar em como seria se houvesse uma espécie de errômetro, uma maquineta que nos avisasse, dentre outras coisas, a extensão do erro, seu grau de periculosidade e seu poder em falsificar uma informação, em falsear uma notícia. O jornal que realmente venha a existir no futuro – e que não seja tão-somente jogada de marketing capenga – certamente contará com o auxílio luxuoso desse intuído errômetro, acionando alarme acústico para dizer que o texto falha nisso, nisso e naquilo, e também que os números são imprecisos ou não confiáveis chegando a nos surpreender com o piscar intermitente de luz roxa para dizer que o enunciado não encontra eco na realidade.
‘Mas, que idéia fixa desse Washington… Para criticar a Folha, nem a seção `Erramos´ se salva?’, poderia pensar o leitor desavisado. Mas se engana, como se engana quem vê qualquer crítica contrastando com preto ou branco, desprezando por completo aquelas diferentes 60 tonalidades de preto que, dizia-me dileto amigo, era capaz de discernir a frio o olho do grande pintor holandês Rembrandt van Rijn (1606-1669). Na verdade, para desgosto de muitos amigos, tenho respeito pela Folha – não pelo que é hoje, mas antes pelo que esse jornal representou em minha vida de garoto de fins dos anos 1970 a meados dos anos 1980, em termos de lufada de ar puro e de marcha batida à banca da carioca Rua Farani, em Botafogo,para ter em mãos o exemplar ainda quentinho, como pão francês saído do forno nas madrugadas de domingo.
E se pareço amargo com a Folha, isso nada mais é que uma das 60 modalidades de se apreciar a trajetória e a realidade mais profunda de um jornal. Sempre fui muito seletivo com jornais. E nessa seleção de apenas dois nativos é fato que nunca deixei de ter um sorriso no rosto ante uma capa bem caprichada do jornal da condessa Pereira Carneiro e do então imberbe Frias. Curioso é que com esses dois jornais desenvolvi relação conflituosa de amor e ausência de amor, mas nunca de ódio.
Que venham, então, os apupos. Porque a vida é muito curta para ser assim, digamos, pequena.
******
Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter