Pode parecer uma viagem no tempo, bem ao gosto da ‘literatura de antecipação’ em moda nos anos 1960: de repente, em pleno 2010, passar por uma banca e ver exposta a velha Realidade número 10, edição especial sobre a mulher brasileira, apreendida, em 1967, pelo establishment. Mas ela está lá, nas bancas. Foi relançada pela Abril, ipsis litteris, acompanhada, à parte, por uma pequena publicação que relata e analisa os fatos da época.
Não deixa de ser uma elucidativa viagem no tempo, pelo menos para quem acompanha a evolução e as mudanças do jornalismo. O leitor certamente vai estranhar. Matérias como a história de uma mãe solteira que se orgulha de sua situação, as fotos de um parto ou três tristes histórias de desquite (esta, assinada por mim), podem parecer, hoje, de uma santa ingenuidade.
Mas, à época, eram de uma grande ousadia e corajosa criatividade.
Mostrar e explicar a anatomia feminina e a formação de bebês no útero, contar a história de freiras que substituíam padres ou transcrever o depoimento de uma jovem atriz que se considerava livre são assuntos banais, hoje, na TV e nas revistas. Na época, artigos assim eram considerados uma ofensa à moral e aos bons costumes.
Relato detalhado
A ousadia se repete agora em termos empresariais. O lançamento de uma edição de 40 anos atrás certamente não tem as mesmas perspectivas de faturamento publicitário ou venda em bancas que outras, mais atuais. Mas é uma grande contribuição para o jornalismo.
A publicação que acompanha Realidade reimpressa descreve a sociedade da época e toda a coragem da revista, não só na edição número 10, mas em todas as suas primeiras 30 edições, pelo menos. Menciona o sucesso da circulação: o recorde de 1 exemplar para cada 178 habitantes do país. Sem falar na criatividade necessária para uma revista mensal, com fechamento editorial muito antecipado, estar sempre atualizada.
O segredo estava na pauta, que descartava os fatos perecíveis ou efêmeros (preferidos pela imprensa diária e semanal) e ficava nos aspectos mais permanentes de cada acontecimento. Como uma ‘revista de autores’ (na classificação da tese de Adalberto Leister Filho), outro segredo era o cuidado na elaboração dos textos – o que levou alguns acadêmicos a classificar Realidade como exemplo do new journalism no Brasil e de jornalismo literário.
(Mas o método de trabalho de Realidade deve ser tratado mesmo em livros. Um deles está sendo preparado por Mylton Severiano, que ‘herdou’ o relato minucioso da preparação das primeiras edições, deixado por Paulo Patarra, com todas suas negociações internas e externas. Outro, Realidade Re-Vista, conforme promessa do editor e livreiro José Luiz Tahan, deve chegar às livrarias em menos de 60 dias.)
O que faltou
Simultaneamente, nas bancas, estava a Veja-Edição Especial da Mulher, inspirada, segundo seu texto de apresentação, naquela edição histórica de Realidade. O rodapé da carta ao leitor sugere que ter junto, em mãos, a edição apreendida de Realidade ‘é um casamento ideal’. A principal chamada de capa, ‘Herdeiras de uma revolução’, também insinua essa ligação.
Mas é impossível deixar de perceber o contraste entre as duas edições.
Na mesma imagem de viagem no tempo, um leitor que estivesse adormecido por 40 anos e lesse Veja poderia chegar à conclusão de que a mulher brasileira chegou ao paraíso. A capa anuncia que o poder aquisitivo aumentou, que é possível cuidar de filhos e do emprego ao mesmo tempo e sem drama, que as mulheres desfrutam de quatro décadas de conquistas.
Já os textos, lá dentro, mostram, discretamente, que ter filhos pode ser um problema para a carreira profissional da mulher, que a chegada da mulher ao mercado de trabalho causou um impacto cultural, a ascensão social vem junto com a falta de informações. Apenas menções, diluídas naquele já conhecido clima de otimismo.
A edição de Veja repete, com as mesmas perguntas, a pesquisa elaborada em 1967 por Realidade. É de fato interessante acompanhar a evolução da opinião feminina nestes 40 anos. Essa pesquisa, em 1967, foi extremamente importante: fazia as perguntas certas, para a época. Perguntas audaciosas, provocativas, que poderiam ser mal interpretadas por conservadores.
Mas quais seriam as perguntas certas, hoje em dia? A edição de Veja, bem feita em termos técnicos, bem acabada, acabou sendo também muito bem comportada: fica devendo uma pesquisa com as perguntas certas para os dias de hoje. Remuneração, maridos indolentes, creches fantasma, assédios, novos tipos de discriminação, violência doméstica: tudo isso ainda existe.
Os editores dizem, em sua carta ao leitor, que esperam um diálogo entre a Veja Especial Mulher e o número 10 de Realidade. Pode ser que dialoguem, mas é um diálogo assimétrico. Em Veja faltou o que Realidade tinha de sobra: ousadia.
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Jornalista