Graças ao trabalho de jornalistas notáveis como Luis Nassif, Saul Leblon e Leandro Fortes, pode-se agora não apenas traçar a genealogia do mal-chamado ‘dossiê’ contra o candidato à presidente José Serra mas ter acesso ao criticismo mais apurado e contundente em relação a mais esse episódio demeritório para a política e para a mídia nacionais.
A divulgação do ‘dossiê’ como forma de evitar ou ao menos minimizar o impacto – potencialmente nocivo para Serra e o PSDB – do livro do jornalista Amaury Ribeiro Júnior sobre as privatizações no Brasil, a ser lançado em agosto, expõe uma das razões principais para o factóide, embora, como veremos ao final deste artigo, não as esgote.
Mídia é corresponsável
Mas mesmo antes que se tornasse claro o que já era para muitos evidente quando da publicação da primeira matéria sobre o ‘dossiê’, tornava-se, uma vez mais, motivo de grande consternação e preocupação o comportamento da ‘grande mídia’ brasileira em relação ao caso.
Pois se a inserção de dossiês no circuito político-eleitoral é deletéria à democracia, o modo como as principais publicações e a maioria dos telejornais têm tratado o caso é ofensivo a seus leitores/telespectadores – e é isso o que, no âmbito deste artigo, nos interessa frisar.
Primeiro porque, ao dispensar tamanha atenção e espaço a um produto de atividade protocriminal, é a mídia quem, de uma maneira ou de outra, acaba por endossar essa má prática político-eleitoral.
Segundo, e mais importante, porque ao ignorar as muitas e contundentes questões que cercam a autoria de tal factóide e a identidade dos que dele se beneficiam, dando-lhe divulgação, a mídia, ao mesmo tempo em que se alia aos que o perpetuaram, constituindo-se como meio privilegiado de propaganda e difusão do ‘dossiê’, subvaloriza a capacidade crítica de seu público.
Questões de um energúmeno
Pois só concebendo-o como um energúmeno incapaz de fazer a si mesmo perguntas óbvias, os veículos da ‘grande mídia’ poderiam endossar a pantomima de que o dossiê fora forjado pelo grupo dilmista como forma de atacar Serra.
Ora, entre as perguntas que o leitor, ainda que tido como idiota pela mídia – quase um ‘Eremildo’, do Elio Gaspari – faria, estaria obrigatoriamente o questionamento acerca de o porquê de uma candidatura que vinha em ascensão e acabara de ultrapassar o adversário em algumas pesquisas eleitorais lançaria mão de tal estratagema desesperado.
Ainda que reduzido aos dois neurônios que nossas empresas jornalísticas lhe atribuem, o leitor haveria de fazer um balanço, mínimo que fosse, de quem se beneficiaria com a divulgação de que o PT teria negociado um dossiê contra Serra.
Mesmo concebido pela editoria do Jornal Nacional como um Homer Simpson, o leitor/telespectador certamente se daria conta de que uma maneira esperta e dissimulada de trazer à tona informações que podem vir a ser comprometedoras no futuro – mas não se vierem com o carimbo de ‘obtidas ilegalmente através de dossiê’ – é divulgá-las entre a mídia amiga atribuindo-as a um dossiê da oposição, a qual faria por merecer, uma vez mais, a pecha de aloprada.
Embora com capacidade crítico-reflexiva alegadamente restrita, o leitor há de ter boa memória, não só para ligar os nomes de Serra ao do deputado Marcelo Itagiba, mas para recordar-se de um modus operandi conhecido de outros carnavais, assim como o são os mesmos blogueiros corporativos cuja parcialidade só rivaliza com o antipetismo que nutrem, e que só faltam dar piruetas de felicidade em cada nota emitida sobre o ‘dossiê’.
Perguntas urgentes
A ironia, no entanto, não oculta a urgência de nos fazermos uma série de perguntas:
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Até onde pode chegar esse conluio entre mídia e interesses político-partidários, admitido até pela presidente da ANJ, Maria Judith Brito?**
Quais os riscos efetivos para a lisura do processo eleitoral ora em estágio inicial e para o pleno exercício da democracia no momento das eleições?**
Quando a sociedade reagirá contra essa mídia transformada em partido político?**
Quais as consequências dessa partidarização da mídia para sua própria credibilidade?**
Pode tal fator minar, no médio prazo, as bases comerciais sobre as quais se assenta a atividade midiática?**
Até quando o leitor/telespectador que lhe permanece fiel aceitará ser tratado como um idiota pela mídia?******
Jornalista e cineasta, é doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog