‘Para além das letras – vale a pena olhar o jornalismo literariamente e a literatura jornalisticamente?’ José Hamilton Ribeiro
Para parafrasear Mário Quintana. São três nomes apenas. As desse expoente bendito. O céu não tem três nomes. E nele já cabe o infinito. Para louvar nosso Zé. Toda matéria que se escrever. Nunca há de ser tão grande. Que perder a perna em nome da profissão que se quer ter. Figura tão representativa. Bem sabem os telespectadores seus. Que o trabalho dele é do tamanho do céu. E apenas menor que o respeito de mais de uma geração. Ainda que falte a rima… Para quem não liga o nome a pessoa, o bom Zé samaritano em questão é simplesmente tratado como ‘o repórter do século’. Um cartão de visita que diz mais que o mais vasto currículo. Meia hora de conversa com o sujeito vale, pelo menos, por dois anos e meio de academia.
Não é difícil entender o papel de alguém que convive com o jornalismo desde sempre. Que ainda relembra o dia em que um aviãozinho caiu em sua cidadezinha e lá foi o enxerido molequinho saber do que se passava; para poder contar em casa, mais tarde. Jornalismo em estado puro. Literatura elevada à enésima potência. Um ser humano que sobreviveu às diferentes eras da profissão. Que escreveu com tinteiro, revisou no mimeógrafo, configurou no word, publicou no joomla e depois anunciou no twitter. Uma figura exponencial, que faz parte da primeira geração de jornalistas com mais de setenta anos, ainda no front da reportagem. Eis o mote definitivo para esse pretenso ensaio. Lembra (ensina? profetiza?) Ribeiro: ‘A reportagem não é apenas uma forma estelar de informação, mas é também um gênero literário equivalente ao romance. Sendo (Gabriel) García Márquez quem é, eu acho que o que ele diz merece respeito.’ E você também, meu caro Ribeiro. E se espirrar, saúde…
O ponto central da discussão é esse. Não há uma boa peça jornalística sem uma boa história. Ao que parece não vai haver peça literária de credibilidade se não forem reconhecidos personagens com algo a dizer. É o ponto inicial. O primeiro passo da caminhada para se ir ao longe. O apito que autoriza. E legitima a peleja de qualquer serendipitoso que se preze, como já registrou Gay Talese. Seja a história do assalariado endividado que cobriu o ponto de ônibus na esquina da sua casa ou o último sobrevivente do Holocausto. Alguém com gripe suína, bovina, aviária ou alguém que assistiu in loco à decisão da Copa do Mundo de 1950. Barack Obama ou Fernandinho Beira-Mar. O fato é que não há, por certo, uma história boa ou ruim. Há a história bem contada e a história má contada. O que faz do produto literário eterno são a qualidade e genialidade com que a trajetória é conduzida no relato. E a efemeridade do jornalismo, nessa perspectiva, pode ser combatida com mecanismos distintos na transferência para o papel. Ou para qualquer outro formato ou plataforma. Antes mesmo de essa bola aparecer quicando, almas privilegiadas como Talese, Truman Capote, John Hersey e, por que não, o próprio Ribeiro, já olhavam para o contar jornalístico com a avidez que um romancista olha para cada um de seus verbetes publicados.
A satisfação paga muito
Combatido, convenhamos, talvez nem seja a expressão mais feliz. O valor efêmero do jornalismo não é necessariamente uma opção, mas é, em definitivo, uma contingência. Como se convencionou afirmar, o jornalismo é a expressão do agora. O flagrante, o imediato são manifestações pontuais da profissão. No entanto, particularidades da exposição jornalística podem fazer dele ‘produto de longa duração’, como ensina a fórmula testada e comprovada de Ribeiro. Sua capacidade de ser literário não é apenas um luxo extemporâneo. Mas uma verdadeira expressão de compromisso, que merece uma apreciação para mais adiante.
Não há outra discussão mais em voga nesse meio que as saídas para a categoria. A concorrência de bloggers que retratam pseudo-realidades, fechados entre as quatro paredes do próprio quarto, conforme assinalou Talese em entrevista para o periódico Estado de S. Paulo. O paralelo do entretenimento e da publicidade que consomem páginas de jornal, tempo em grades de programação, que cerceiam espaços que já foram de outros segmentos, negligenciam a informação. Quem dirá a abordagem aprofundada, de fôlego, em tempos em que o crivo são os caracteres, e não os neurônios mais generosos de uma figura feito Caco Barcellos. Não que a conduta esteja errada. A citação serve menos como julgamento de valor e mais como apreciação da realidade. Contudo, o espaço que hoje não há para Mauri König, ao menos como o brilhante profissional julga necessário, seria dedicado aos folhetins de Machado de Assis? Deixa pra lá; ele já morreu, mesmo.
Nenhuma requer diploma. Falemos nós de jornalismo, de literatura, cada um com seu cada um. Porque transpiração não olha diplomados. Embora não faça distinções. E no aspecto mais fundamental, quem escolhe as letras como condição de existência tem mais a perder que noites sem dormir, que finais de semanas preso a um computador, que a má vontade de assessores de imprensa que não se dão conta que são assessores e seu trabalho se resume a assessorar. O fato é que é escrever talvez seja o trabalho braçal mais inglório. Mas é por certo o mais revigorante, também. Aqui talvez a recompensa não seja a mais justa, ou a mais merecida. Mas aí recorremos a Karl Marx. O que seria da mais-valia nossa de cada dia se a justiça fosse uma remuneração absolutamente condizente? Ora, essa é muito boa! Seja como for, a satisfação paga muito. Você vai entender quando vir seu livro chegando da gráfica.
Nosso é tempo é hoje
Mas, falando nisso, ‘pagar’ é uma condição estranha. Muitos dos maiores milionários e das figuras mais influentes da sociedade brasileira nunca promoveram ou se deram conta de uma reflexão sequer; mesmo porque a maioria deles não sabe exatamente o que é uma reflexão. Nem é de se esperar que já tenham estado por de trás de uma. Nesse particular, donos de textos brilhantes, que fomentaram discussões, motivaram contendas que de alguma maneira contribuíram para um novo olhar sob a sociedade, nem sempre vão atingir o mesmo nível de recompensa. Pode ser coincidência, mas sociedades desenvolvidas não aparentam reproduzir essa lógica.
É estranho, aqui para nós, que toda essa natureza de formadores de opinião não precise de formação específica no exercício da profissão. Não se deve, aliás, pensar numa formação tecnicista, mas naquela pensada de forma humanística. Uma carreira não pode ser considerada irretocável sem pessoas preocupadas em pensá-la. Aliás, não há sequer espaços mais úteis para esse tipo de iniciativa que bancos de faculdade. Por uma série de fatores, sobretudo de natureza empírica. Poucos locais permitem a reunião de diferenças de maneira tão harmônica. A propósito, essa harmonia é fruto da liberdade bem estabelecida que emana do ensino superior. Nessa fase, o erro é mais tolerável, e há a clara percepção de que sem esse receio prepara-se o terreno para a ousadia. E essa é a saída mais concreta para criar novas concepções de mundo. Outro aspecto que merece ser ressaltado, é o que dá conta da diversidade que o espaço faculta. E esse é um cenário mais que útil. Se o preconceito não é valor apagado, a pluralidade precisa ser considerada e o quanto diferentes visões de mundo contribuem para o debate.
Mas as atividades não exigem diploma. Ponto. O que efetivamente nem é o ponto central da discussão, contudo o grau de intelecto que essa diferença irrisória pode refletir na atividade do sujeito, pode acabar sendo. Por certo, não será ele melhor ou pior, mas efetivamente uma figura mais preparada; mais experimentada, mais ousada e segura. Cada vez mais pronto, sempre mais atento e entendendo com mais propriedade os problemas, até por sua experiência prévia, que já foi testada, já foi pensada. Seja como for, há coisas em comum diante da literatura e do jornalismo, além da simples questão protocolar suscitada. Entender algumas circunstâncias são cirúrgicas nesse aspecto. Nada substitui o feeling, a capacidade humana, o trabalho. Que quando disciplinados, e não tolhidos, se acentuam. Eis o que há por trás do pedido de concordata de uma das mais tradicionais agências de fotojornalismo, na França. Com seus prejuízos na ordem de três milhões de euros. O desenvolvimento de uma tecnologia depende da maturação do tempo, inevitavelmente. E nosso é tempo é hoje.
Características da sociedade não permitem sorrisos
Uma preocupação comum é o leitor. Como bem já sugeriu o jornalista José Carlos Fernandes em sua dissertação de mestrado ‘O leitor mora na tipografia’. O leitor de literatura; o leitor de jornal – essa perspectiva interessante a se pensar. É notório que o grau de instrução do individuo colabora com isso. Mas também é preciso avaliar questões como as novas tecnologias, que trazem muitos meios de acesso a informação. Imaginemos o jornal. Produto consumido pelos leitores enunciados antes. Resta o fato de que sua maneira de registrar a história guarda em si mais elementos do que os disponíveis à literatura. Pontos certeiros estão nas linhas jornalísticas, aprofundando-se numa maneira que o tempo seguinte não permite. Não há como recuperar declarações acaloradas, depoimentos de falecidos, com a autenticidade do instantâneo. A literatura permite entender menos a relação de certos fatos, seus desdobramentos, versões contraditórias, apuradas na ordem do dia.
Atualmente, essa ferramenta de informação tem seu espaço reduzido, porém ainda assim guardando sua representatividade. Que permanece e cria também outras necessidades. Os jornalistas de redação precisam pensar em quem atingem; e quem querem atingir. É preciso manter o público preso na leitura, fiel na assinatura e convicto na compra diária. Como o romancista literato perde o sono em busca da nova história que vai publicar; e convencer o leitor a comprar mais um livro. A presença do lead universaliza a informação. Muito pelo fato do leitor do jornal permitir-se co-autor, pela ideia da ação do receptor, do jornalismo comunitário, da idealização de um cenário 2.0, parafraseando o conceito da web. O leitor constrói o fato, simplesmente porque não convém acreditar que a pesquisa de campo esteja limitada ao jornalista. A produção especializada por certo é restrita ao profissional, mas a história é construída por pessoas, não apenas por jornalistas. Some-se a isso a queda do diploma e qualquer um está habilitado a ser produtor. O crivo continua o mesmo, a recepção inclusive, mas a origem se permeia na sociedade. É certo que isso confere mais realismo e credibilidade para os acontecimentos. Porém ainda cabe a discussão da validade desse processo que, a priori, não cabe ser enunciado agora.
Tratar de uma suposta complexidade do leitor de livros, face em especial ao leitor de jornal, soa como pedante, no mínimo. Há um equívoco interpretativo, ou um excesso que não retrata a realidade. Existe uma subjetividade ampliada nessa questão de complexidade. Fica claro uma divisão, mas não um tratamento particular para isso. Entender a compra ou leitura desse ou daquele jornal é um processo muito mais complexo, do que caracterizar um leitor romancista ou realista ou barroco. As bases históricas das características literárias já estão bem definidas, ao passo que a produção jornalística se dinamiza, sente o reflexo do mercado, da globalização e muito mais do contexto social. Sem falar que os especialistas em obras literárias são bem mais numerosos que os de jornalista, onde são poucos os doutores e autoridades desse nível. Além da amplitude e de uma bibliografia ainda tímida. As potencialidades de reflexão que ainda restam para o jornalismo são infinitas próximas da literatura que passou, por exemplo. A realidade, em última análise, é tão complexa quanto qualquer personagem machadiano. E se as coisas devem ser ditas, lembre-se que apenas na academia a complexidade dos leitores é desenvolvida. Um mero leitor eventual ou não, é uma figura isolada, que em regra não se presta a tais processos de esmiuçar o produto. As próprias características da sociedade brasileira, ainda subdesenvolvida e emergente, não permitem muitos sorrisos nesse aspecto.
O princípio da respeitabilidade
A literatura, com todos os seus nuances, não evidencia com clareza a preocupação com o público. As ‘publicações especializadas’ são muito mais legíveis no jornalismo, mesmo por ser uma de suas saídas mais recorrentes. A amplitude nas interpretações a partir de um ensaio literário também favorecem, e de certa forma é a razão de ser, que o público se apoie em qualquer pessoa que conheça o idioma. Não se deixa de assinalar, por conseguinte, como isso confere pluralidade. Se num texto jornalístico não cabe uma interpretação dúbia, a abertura acentuada numa peça da literatura é bem vinda. Entretanto, ainda que com tal peculiaridade, um e outro não se furta de apreender características que não são suas, mas coexistem com louvor. O rigor, a apuração, a influencia dos personagens vão de um a outro, bem como a sensibilidade de texto, a criatividade, a narrativa extrapolam uma e outra página.
Pensar que o texto somente existe após ser lido, não é meramente uma frase, é mais que isso. O ponto remete a questões muitas fortes e ideológicas, ninguém escreve para ninguém. Substancialmente, o produtor é um leitor em potencial. E isso não somente no meio jornalístico. A leitura do outro deve ser a consequência de uma boa narrativa, de uma boa informação. Daí surge à preocupação com o seu leitor de modo geral. O texto, aliás, com sua capacidade de aliar a influencia das palavras com a força da narrativa, toma uma proporção cada vez maior, do ponto de vista da carga que traz consigo enquanto interpretação, ponto de vista, condicionante. E o poder do jornalismo nesse particular, beira o incomensurável. O potencial de formador de opinião, persuasivo, questionador, controverso faz do texto noticioso um produto de alto risco e valor agregado; o que não permite privar a discussão recorrente nesse espaço da suspensão do diploma, garantia fundamental e quase insubstituível de compromisso com a responsabilidade, a ética e o serviço que o jornalismo tem a prestar. Poucas coisas convencem tanto quanto uma matéria publicada, no veículo que for. Soma-se o nome do repórter, a qualidade e diversidade das fontes, a preocupação com o material, com a pesquisa e com a produção anteriores ao fechamento, que se chega a verdadeiros tratados sociais da realidade, como (o que não se pode exigir de leitores não profissionais) se aquela fosse a verdade absoluta e inquestionável. Um cenário que absolutamente não existe, nem com muita boa vontade.
Falando em produção, fechamento, apuração e outros jargões, é fato que algumas situações se modificam, pensando jornais como material dependente da venda, de lucro, ou seja, o comércio a todo custo e a guerra entre os concorrentes, mexe-se numa manchete ou em editorias especificamente. Ainda assim, se pensa num maior número de pessoas lendo o conteúdo publicado, em especial por algumas razões pontuais. Nos últimos tempos, se atentou para o fato de que antes do texto, deve-se preocupar com a produção periférica, e em especial para como esse material será lido, sob pena de subversão dos interesses e confusões irremediáveis. Aqui a analogia de saída passa por processos até mesmo preconceituosos. Não cabe subestimar o leitor, encarar o senso-comum como a média esperada. O leitor que hoje acessa o jornal está atrás de algo mais. Nada de tão radical. Contudo, disposto a oferecer alguma ponderação. Ainda assim, é muito perceptivo que alguns veículos tratem seus leitores como consumidores. E o cliente, sim, tem sempre razão e daí surgem mudanças. Independente disso, o princípio da respeitabilidade de parte a parte já encerra muitas coisas.
O produtor também se desqualifica
O ponto da leitura que é essencial ser citado é a forma como o leitor lê hoje, quais são as interpretações tidas daquilo que se foi escrito. A produção de um texto de jornal, nessa altura, pode ser separada em quatro momentos. Primeiro a produção, buscar personagens, fatos, histórias e dados, segundo a construção do texto, isso pensando na melhor forma de interpretação de um terceiro, você escreve para alguém e não para si. O terceiro ponto é a publicação, claro sem isso não acontece o quarto momento e aspecto mais importante, a interpretação do leitor, o conhecimento adquirido na leitura daquele conteúdo. Pensar se você está escrevendo e conseguindo transmitir a realidade dos fatos para a matéria, sem se envolver ou mostrar posição, sem deturpações. Certo pragmatismo se perpetua aqui, alguns valores estão implícitos, mas é fato que o fechamento do produto passa pelo crivo do comercial, de um material que dê lucro. Socialmente responsável; talvez… lágrimas nos olhos de uma criança; não tenha dúvida. O consumidor está ali, muito bem apresentado e entendido, mas o leitor nem sempre recebe tratamento semelhante.
A pluralidade está no cerne da produção jornalística. E escrever bem não é fácil, escrever para muitos também não. Escrever para analfabeto funcional é um desafio. Pensar que se seu leitor for analfabeto funcional. Sim, eles podem ler jornal e simplesmente não entender, em que entra o trabalho do jornalista deixar o texto altamente compreensivo para qualquer individuo que lê-lo, indiferente de suas dificuldades ou facilidades com a leitura em si. Tentando uma perspectiva mais aprofundada, cabe uma luz pela maneira estratégica que ainda falta na relação com o leitor, mais do que do trabalho estritamente jornalístico oferecido. O ponto central passa pelo espaço perdido porque simplesmente o jornal é um produto que não se reinventa, que continua com as mesmas bases, salvo exceções, das décadas dos idos do século passado. Ainda não houve uma clara relação entre necessidade e interesse. É fato que o sujeito interessado segue ali, a espera da informação como a moça que espera ávida o casamento. A jovem continua esperando muito a cerimônia, mas não é mais virgem.
O leitor quando pega um jornal na mão já tem toda uma bagagem de conhecimento, de experiência e de repertório intelectual, e este mesmo leitor é aquele que vai dar sentido ao que o profissional escreveu, é ele que vai com toda sua ideologia dar vida para o texto. E por isso é necessária muita cautela na escrita, na linha editorial, no segmento do jornal, pois um único erro pode fazer um leitor cancelar a assinatura. Mas é uma falácia desenhar que o leitor atual tenha se tornado menos inteligente, do que em qualquer outra época. Ponderar esse cenário é não reconhecer certas circunstâncias. A média do intelecto humano hoje é mais alta, pelo próprio avanço biológico e científico, sem falar que a ciência em si, jamais caminhou tanto quanto caminha hoje. Há um tanto de valores deturpados aqui, no qual o leitor não pode estar na gênese de todos os males. Existe uma clara dificuldade em ponderar que o produtor também se desqualifica, que o exercício da profissão se banalizou. É como se o jornalismo tenha deixado de lado a vocação para virar status. Uma pena.
Jornal publicitário, com algumas notícias
Pensar que é somente a elite que tem acesso aos jornais é algo mais do que ultrapassado. Trabalhar com questões intelectuais sim, nota-se uma diferença, mas de classes não. Isso pois hoje pessoas de classe C costumam ler o jornal, muitas mesmo que apenas uma editoria ou outra, seja a de esporte ou social, mas ainda assim se trata de um público; a discussão pode ser da relevância desse público, muito mais propenso ao eventual. E esse acréscimo de gente é importante para sobrevivência das publicações. É improvável imaginar que os jornais impressos se extinguem de vez, mas é preciso sempre conquistar mais leitores. No entanto, nada é mais ultrapassado que o jogo político envolvido nesse meio. Que, diga-se de passagem, merece outra perspectiva. O discurso de imprensa livre não convence, o fato certo e concreto é o de que liberdade deveria se confundir, na tese das organizações, com uma terra sem lei. Não se deixa de lembrar que outros cenários estão por certo tomados por esses sujeitos e por interesses escusos. São em regra sociedades desprezíveis economicamente.
Com as mudanças na vida das pessoas, hoje as coisas são mais didáticas e corridas, a falta de tempo é notória e o lead veio para acentuar rapidamente o leitor dos acontecimentos do mundo, mesmo aquele que lê de pé no ônibus, o que lê correndo, ou aquele que lê somente o primeiro parágrafo. A vida mudou, as pessoas mudaram, mas alguns costumes não mudam. Aquele velho costume de ler jornal, por inteiro, na mesa do café da manhã não morreu, mas é privilégio de poucos. Seja como for, se os veículos de comunicação se julgam tão conhecedores de seus leitores, chega a ser contraditório que o ponto chave do problema seja a queda no índice de leitura… Convenhamos, no entanto, que a mesma discussão não se ouve em outros veículos com a mesma intensidade, pelo menos. Sequer o contexto é levado em conta na apresentação dos números de queda, por exemplo, em épocas de retração da economia nacional. Por trás do número, entretanto, há o que se pode chamar de obtuso, na medida em que os jornais desconsideram sua mobilidade evidente, e dão tratamento precário para a informação. Mas há ainda outro pormenor, do letramento no Brasil. Um problema no qual a perda de leitores é o menos relevante, perante o dilema social que se tem pela frente. O aumento da população acentua a precariedade dos níveis de educação do Brasil.
Olhar para a nova configuração do planeta, dos problemas que extrapolam a realidade aceitável. De fato, nesse particular, o refino dos profissionais de outros tempos se perdeu. Se nos anos 60 era possível encontrar Talese na redação do New York Times, hoje um perfil de uma jogadora de futebol chinesa é um texto descartável na lógica do mercado. A informação, verdade seja dita, se dilui no mar de interesses que permeiam essa e aquela publicação. É preciso abrir o espaço na diagramação para a publicidade, depois há aquela coluna institucional e mais um tanto de informes publicitários, existem os espaços disso e daquilo, licitações e afins, para que depois os materiais jornalísticos sejam dispostos. Pensando nessa perspectiva, há ainda a desvalorização do texto, do texto apurado, da abordagem que vá além de twitters e bloggers, em meia-dúzia de caracteres, melhor se abreviados. Aqui vai o infográfico, essas três fotos, aquela ilustração, outro infográfico, pronto: o texto cabe aí ó. O próprio papel do repórter foi negligenciado, quanto mais reprodução das agencias gigantes houverem mais perto da perfeição estaremos. Não é exagerado pensar num jornal publicitário, que traz algumas notícias.
Falta de iniciativas ousadas
Há quem diga que os processos atuais representam avanços rumo a modernização. Não que não sejam, mas o equívoco está em acreditar que modernização é sinônimo de evolução. O lead pode ser o foco dessa questão. Essa anomalia não deveria ser definida como parâmetro de bem e de mal, principalmente na academia, onde a criatividade deveria ser o que mais houvesse a se valorizar. Entre o lead e o nariz-de-cera, que viraram quase dicotômicos, não deveria haver uma relação de melhor ou pior, mas uma relação absoluta de qualidade. Certas coisas são assinaladas com mais eficiência quando não são ditas. Nesse caminho sem volta, um valor preocupante simplesmente é negligenciado. O jornalista sério, responsável, profissional deve desmistificar o fato de que seu trabalho não tem outro fim que não o embrulho de peixe. Ou seja. O valor fundamental do jornal impresso é a permanência, ainda que o leitor não entenda em absoluto esse valor, o que há por trás da árdua produção de cada página. Mas é evidente que isso passa pela responsabilidade dos próprios profissionais, ao não tratar, por exemplo, todas as pautas com o mesmo denodo, não tendo em foco que cada história merece ser contada, passando por alto pelo fato de que toda vida é absolutamente insubstituível, toda pauta deveria assim ser encarada.
A realidade deixa a pulga atrás da orelha, dividindo espaço com a caneta. Em certos momentos, sequer o interesse público parece resistir. Algumas contradições saltam aos olhos. É preciso ir com calma a respeito da universalidade discursiva do jornal impresso. Tentar falar a todos os públicos pode acabar sendo a derrocada do não ser ouvido (ou lido, no caso). O jornal não tem necessária vocação para serviço como fim, mas historicamente para condução, pela influência que exercem e pelo respeito que encontram na sociedade.
Notoriedade a parte, vale retomar a discussão do leitor de literatura e do leitor de jornal apontada por Fernandes. Estaticamente, o contingente de parte a parte quase que se equivalem. Para não dizer que seja o mesmo… A propósito, ainda sobre o respeito implícito, o jornal pode entrar num caminho tortuoso. Diante da expansão nítida da internet, não convém pensar numa concorrência. De saída, os aspectos são distintos. Não cabe ao jornal oferecer notícia. Mas sim desenvolver reflexão, trabalhar com materiais de fôlego. O mote quanto ao ponto de vista cultural é o de um dilema complexo. Nunca (até hoje) se entendeu e ainda não se fez esforços para que o consumo de cultura seja de fato um valor necessário, e não supérfluo. A ligação ainda está em torno da ociosidade do entretenimento e supostamente, ficaria para depois, quando fica para algum tempo. A falta de iniciativas ousadas, muito por parte da própria imprensa, contribui com esse aspecto. Os próprios critérios de relevância e valor notícia soam deturpados. Não é necessariamente o fato do leitor se reconhecer no material, mas na verdade se surpreender, sendo uma das boas situações proporcionadas pelo jornalismo bem feito.
Um apurador compulsivo
De todo jeito, voltemos a discussão em torno da leitura de jornal vinculada a certas atividades específicas. Existe, no mínimo, um equívoco de perspectiva, no qual o tempo que é gasto para as tarefas ligadas a leitura do jornal, importam menos do que o uso e a maneira efetiva de encarar o produto. Um dos fatores que atentam no tempo destinado ao periódico, certamente, está ligado ao problema ideológico político partidário em voga no Brasil. Os debates de temas pontuais feito esse, que são prejudicados menos diante da boa vontade das publicações. Chega a ser, no mínimo, contraditório, por exemplo, que esse efeito se acentue num momento do jornalismo brasileiro em que o fenômeno do colunismo atende a uma demanda ainda não vista. Tamanha a representatividade que ganham nas páginas das publicações, que as críticas já podem ser ouvidas. É, por certo, um tópico a ser avaliado, no momento oportuno, até que ponto seja válido a personificação da informação e da imprensa com certo excesso; em especial no jornalismo impresso, nomes e pessoas são menos significativos do que em veículos onde a exposição é explícita. Trata-se, acima de tudo, de um julgamento dos mais lúcidos, para a isenção, para a apuração, para a imparcialidade inalcançável.
É interessante a tese de que a imprensa escrita ainda ofereça poucas contrapartidas aos leitores. ‘Agrados’ a assinantes por exemplo, além de algo que compreenda mesmo o público da banca. De fato, a simples contingência da informação, nem sempre bem tratada, não é suficiente para garantir essa audiência. No mínimo, é um diferencial possível e aceitável. Pensando na contrapartida da literatura, uma vantagem a favor do jornalismo é a figura do profissional das letras, que é de fato um escritor completo, ágil, plural. Mas ao falar de agilidade, de velocidade, cabe apontar que o potencial do produto impresso, criticado pelo tempo entre o fato e a sua transformação em notícia propriamente dita, precisa ser encarado de outro modo. A ação do tempo, sobre o jornal, tem outra força, em relação a outros veículos, sendo exatamente como mais reflexivo do que informativo. A permanência que está implícita no produto em si. É útil assinalar como a invenção literária, de maneira absoluta, é contribuição definitiva para a estruturação do jornalismo. Querer negligenciá-los é uma medida desprezível.
O processo todo passa por um cuidado que é recorrente. Do jornalismo necessariamente não perder sua essência, de conceitos que parecem subverter e colocar em dúvida se as mudanças e transformações fizeram o jornalismo esquecer o que é informação, será?! Em suma, uma das peculiaridades, sobretudo olhando a profissão e a literatura, é da que jornalista não é autor ou coisa que o valha, mas é definitivamente quem tem a função de informar, relatar, narrar, contar, um apurador compulsivo. Desmistificar esse ponto é ir contra a natureza da própria origem.
Assumir o desafio de enxergar
É facultado ao jornalista que se preocupe em facilitar a vida do público, ajudá-lo no consumo do produto que o jornalista oferece, que é a informação. Não se confunda, aliás, que esse processo seja criar leitores subservientes, mas na verdade, é a incessante busca pela precisão dessa informação, no que diz respeito ao seu valor interpretativo e correlatos, oferecendo o melhor produto possível. Nesse particular, também é preciso um olhar responsável sobre a potencial transformação numa linha de montagem do jornalismo, ou seja, uma produção em escala industrial e sem reflexão, sem voltas para o interesse público, sem fazer jornalismo. E ao pensar a mídia impressa, não compete uma aproximação excessiva com outras mídias, nem reprodução sem crivo. Seria o jornal deixar de afirmar as próprias convicções. Se misturar à multidão. Sumir…
Separar saberes é um desserviço. Não convém. É preciso identificar como a produção jornalística com vistas à literatura tende ao compromisso. Compromisso de cumplicidade com o leitor, que vê no profissional sua maneira de explorar um mundo amplo, plural, distinto. Olhos de livre, como sugere o poeta Waly Salomão. Existem nuances e características que não são facilmente transcritas no formato convencional. Apenas a subjetividade do literário permite uma clara compreensão dessa realidade. Reescrever a vida com a escrita é o que sugere Eliane Brum. Que vai além, com a fala de quem ensina. ‘A reportagem não é só o que a gente faz, mas o que a gente é. Não importa se o que você escreveu; estará enrolando peixe no dia seguinte. Essa é a minha inscrição no mundo, minha vida, é a minha vida no mundo, é um documento histórico’, diz a jornalista. A saída nesses casos é, como ela mesma diz, assumir o desafio de enxergar. Mesmo que para isso seja preciso ter a barriga no chão.
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