Quem já foi correspondente num ponto distante do mapa sabe que longe é lugar que não existe. Não é fácil ‘vender’ certas matérias no curto-circuito metropolitano, por mais que o repórter esteja convencido da relevância do assunto.
Supostamente, para o público de São Paulo ou do Rio de Janeiro, as crônicas urbanas são mais palpáveis do que dramas com índios, posseiros, pistoleiros, missionários e outras espécies condenadas a uma existência jornalística improvável ou sazonal. Não esqueçamos que a parcela do mercado nacional representada pelas populações mais próximas de tais realidades, na perspectiva dos meios de comunicação do centro, é ínfima.
Entretanto, seja pela atualidade, pelos valores envolvidos ou pelo interesse geral, algumas pautas ligadas a temas de apelo épico ou mítico acabam tendo ciclos de vida mais ou menos breves nas ‘cabeças de rede’. Temas que passaram para os anais, sem que suas causas e desdobramentos tenham tido o tratamento que – por que não? – o público merece, no centro e na periferia. Não em cadernos especiais de não sei quantos anos disso ou daquilo, e sim no dia-a-dia, que é quando o sol brilha.
Luvas de borracha
Só no Pará o país pariu Araguaia, Serra Pelada, Eldorado do Carajás, emasculados de Altamira, radioatividade em Monte Alegre, toda a questão ambiental, geopolítica e cultural em torno da madeira, das hidrelétricas, dos recursos minerais… Temas que envelhecem, adormecem, até morrem, são momentaneamente ressuscitados a partir de atualizações, desdobramentos, personagens…
Depois tornam a dormir, sem que as conexões entre os fatos (as relações causais, as motivações dos agentes) tenham sido reveladas, como recorda o professor Muniz Sodré acerca da teoria da notícia e da função do jornalismo (‘O espetáculo chegou a Anapu’, OI 317, 22/2/2005) [ver remissão abaixo].
Tratados com as luvas de borracha dos clichês habituais, fatos que – por qualquer motivo – constam da agenda dos Estados Unidos ou de algum país da União Européia acabam pintando na nossa também, por alguns dias.
Elo perdido
Quando tais fatos ocorrem fora dos limites de uma geografia distorcida, como é a do Brasil visto a partir da sua ‘zona sul’ ou dos seus ‘jardins’, é preciso muitas vezes combinar tato, sorte e senso de oportunidade na negociação com as grandes redações. Pois é grande o risco de a matéria ser escrita de dentro delas.
Um crime como o assassinato da missionária traz à tona um Brasil abissal, transamazônico, que os meios de comunicação majoritários relutam em tratar. E, mesmo quando tratam de assuntos mais leves, raramente abrem mão dos ingredientes que fazem o tempero da sensação. Como se a tragédia nacional só pudesse ser atingida, compreendida, consumida com algum tipo de condimento.
É o caso da sessão de cinema improvisada num subúrbio insular de Belém, durante o festival que se realizou em fevereiro naquela capital. O enviado especial do jornal do Sudeste teimará em descrever aquele povoado ribeirinho, erguido sobre palafitas em meio a vegetação secundária, à distância de poucos minutos numa viagem de barco desde o centro da capital paraense, como uma espécie de elo perdido da civilização ‘em plena floresta amazônica’.
Redes de interesses
O predomínio do estereótipo acaba obrigando profissionais corretos, não exatamente vocacionados para o show de variedades em que comumente resvala a cobertura do Brasil profundo, a abrir espaço para perguntas insistentes, narrações perdulárias, entrevistas rebarbativas e tudo o que é mais ‘quente’ do que a frieza dos fatos e suas possíveis explicações – a ponto de parecer que falam nas entrelinhas, como se estivessem a driblar alguma espécie de censura.
Afinal, a realidade disputa espaço com severinos, cicarellis, big brothers e outros tipos surreais, em desvantagem.
O que era episódico, distante, marginal, subitamente tem contorno e contexto delineados, porém sem que se chegue tão perigosamente perto de suas raízes. Desenrola-se a brutal linha da vida (e da morte) de um país terrivelmente próximo das favelas e cruzamentos do Sudeste metropolitano – mas o foco nunca parece bem ajustado.
Nas páginas editadas no outro Brasil, assentados e grileiros, pistoleiros e ativistas, e o cotidiano sangrento em que transitam, podem eventualmente dividir espaço com infográficos e artigos de opinião que ambicionem explicá-los, descarnar a relação entre a violência no sul do Pará e as heranças, retrospectivamente, da guinada neoliberal, do regime militar, da economia escravista, do projeto mercantil ibérico… até o ponto em que se esbarra no presente, em relações de poder atuais, nas redes de interesses vigentes. Que abrangem desde agências de notícias internacionais até a rádio comunitária no meio do grande sertão.
Ao próximo vexame
Agressões à humanidade e à natureza, histórias que contam a nossa história e a da relação dos brasileiros com o país e consigo mesmos, até notícias boas – aquelas que não vendem jornal – estão por toda parte, não só no meio da floresta. Mas de nada adiantará o estudante de Jornalismo ir à fronteira com a Colômbia pelo redivivo Projeto Rondon se ele, em sua futura carreira, ceder facilmente a chavões, à preguiça e ao preconceito.
Bida, Tato, Raifran e outros nomes estranhos, pronunciados com as caras e bocas mais sérias da TV, provavelmente deixarão de soar depois do final do inquérito e do esperado julgamento. Anapu, Terra do Meio e outros não-lugares, que moraram nas primeiras páginas dos diários de maior tiragem, já refluem para as internas.
Sem mais coreografias com helicópteros e coletes à prova de balas, sem mais confissões a arrancar para os microfones, o assunto já não rende, esgota-se. A cobertura migra para formatos menos sensacionais, para o registro outra vez esporádico e pontual das rotinas forenses e de novas denúncias e novos crimes.
Na ausência de fato novo ou de novo enfoque, voltaremos aos desdobramentos do casamento do ano ou do próximo vexame dos nossos governantes e representantes.
E o Brasil estará mais uma vez, confortavelmente, de costas para o Brasil.
******
Jornalista no Rio de Janeiro, ex-correspondente da CBN e da Reuters no Pará