Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pérolas da narração esportiva

Já escrevi antes sobre as irritações causadas por narradores esportivos, que aprofundam a geleia geral de falsa cultura que nos envolve.


Já faz décadas – isso mesmo, décadas! – que os locutores pronunciam errado os nomes dos jogadores. Friedrich vira Frédrich, como o antigo meio de campo alemão Mateus, sempre chamado de Mataus.


Pobre língua de Goethe e de Schiller! Este, aliás, é autor involuntário do Hino da Comunidade Europeia, composto, não com esta finalidade, há mais de duzentos anos, pois celebramos os duzentos e cinquenta anos do poeta no ano passado. E a música do hino é a Nona Sinfonia de Beethoven.


Ficha completa


Por sutis complexidades como essas é que fica ainda mais ofensivo o desprezo com que vários narradores esportivos trataram a seleção alemã de futebol. Todo jogador, técnico ou auxiliar, cujo nome começava com ‘w’ ou tinha ‘w’ no meio era logo inglesado para ‘u’, como no inglês. Em certas regiões do Brasil meridional, quando a criança começava a balbuciar as primeiras palavras, dizia-se que ‘já estava inglesando’. Pois pareceu que muitos de nossos narradores também ‘estão inglesando’ nesses primeiros jogos da Copa.


Erram também a pronúncia de nomes de jogadores de seleções de países de línguas neolatinas. Isso nos dá o direito de supor que nomes mais complicados, como os asiáticos e africanos, tenham apenas uma pronúncia aproximada na boca de nossos corajosos narradores e que talvez os jogadores tenham outros nomes em suas respectivas línguas.


Garrincha simplificava melhor os seus marcadores. Eram todos Joões. Ele foi marcado por Joões da Suécia, da França, da Rússia, Joões do mundo inteiro. Mas nele tudo era engraçado e divertido, como o seu futebol, de dribles estonteantes até na língua e na cultura de seus marcadores.


‘Bola com o camisa 9.’ Mas isso o telespectador está vendo. O que eles têm a acrescentar? Que pelo menos nos seja dado o nome do sujeito, idade, em que time joga, qual é seu histórico, algumas de suas características etc.


Substrato cultural


Aconteceu algo ainda mais insólito. Galvão Bueno, da TV Globo, adverte, lá pelas tantas do jogo Alemanha x Austrália, que é um perigo os torcedores entrarem no estádio com garrafas de cerveja. Ainda bem que Casagrande emendou de primeira: ‘É de plástico, eu vi, eu peguei uma dessas garrafas’.


E Luciano do Valle, da TV Bandeirantes, que disse ‘Mataus’ durante dois decênios, inaugurou nesta Copa outros modos de pronunciar nomes estrangeiros. Custava alguém escrever para ele como é que se pronuncia corretamente os nomes dos jogadores?


Em resumo, como no caso de programas populares, a qualidade tecnológica da TV de alta definição contrasta com a indigência cultural e por vezes propriamente esportiva de alguns de nossos narradores.


O Brasil dispensou a obrigatoriedade de curso superior em Jornalismo para exercer o ofício. Ainda não fizeram o mesmo com o professor, com o advogado, com o engenheiro e com o médico, mas não será pertinente perguntar: E por que não podem, se no Jornalismo se pode quase tudo?


Um curso superior, por menos eficiente que seja, ainda dá um substrato cultural a quem dá mostras de tantas carências.

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Escritor, professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras