Três grandes grupos editoriais consideram no momento a publicação do livro Pouso forçado: a história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo regime militar, do jornalista Daniel Leb Sasaki. O tema é trepidante. Os mais velhos ainda sentem tristeza, senão revolta, pelo fim estrepitoso, em 1965, de uma querida empresa nacional. Para os mais jovens, a história da Panair, nascida americana em 1930 de parto induzido pelo crash de 1929, é cheia de emoções e lições, com reflexos até hoje na aviação civil.
O alvo da longa pesquisa empreendida pelo autor é a tragédia da destruição da empresa e das vidas de seus funcionários. Esse drama completou 40 anos em 10 de fevereiro. Por volta das 17h, conta Daniel nesta entrevista por e-mail de Campinas (SP), onde mora, um dos diretores, militar indicado pela Aeronáutica, levou ao diretor-presidente telegrama assinado pelo marechal Castello Branco e o brigadeiro Eduardo Gomes: as concessões da Panair estavam suspensas e transferidas à Varig.
A Folha de S.Paulo não publicou um artigo de Daniel (ver em Próximo Texto) sobre o assunto, no qual relacionava os 40 anos do Caso Panair à atual crise da aviação civil e à recente aprovação da Lei de Falências. E a imprensa em geral não aproveitou a data histórica para traçar paralelos ou expor ironias e contradições presentes nos dois episódios, que o jornalista aponta ao OI. ‘Tenho encontrado dificuldades para divulgar o trabalho’, diz Daniel. ‘É uma tristeza, pois conduzi uma pesquisa muito séria e comprometida com a verdade histórica.’
A surpresa: Daniel Leb Sasaki, 22 anos, é recém-formado em Jornalismo pela PUC-Campinas. Workaholic assumido, acha que tem perfil de pesquisador. A juventude atrapalhou um pouco no início da pesquisa, que desenvolveu originalmente para seu jornal-laboratório: ‘Os veteranos da Panair, tive que conquistar aos poucos’, diz. O prefácio (reproduzido nesta edição) do futuro livro – vamos torcer para que alguma editora o publique logo – é do jurista Saulo Ramos, ministro da Justiça no governo Sarney e amigo próximo do empresário Mário Wallace Simonsen, acionista majoritário da Panair do Brasil. ‘Saulo Ramos me recebeu muito bem, acredito, justamente por não saber da minha idade.’
Para Daniel, a omissão da imprensa nas associações entre passado e presente não foi exatamente por desinteresse. ‘Apenas não acompanhou o desenrolar do episódio a fundo. Talvez, não conseguiu enxergar a sua atualidade.’ Ainda dá tempo. A crise da aviação civil continua.
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A extinção da Panair, que completa 40 anos, foi um choque, sacudiu o país. Como isso se deu?
Daniel Leb Sasaki – A cassação da Panair do Brasil de fato foi recebida como um baque, não só pelo setor aeronáutico, mas pelo meio empresarial e toda a sociedade. Até então, aquela era a mais consolidada e tradicional empresa aérea do país, um império verde e amarelo celebrado em prosa e verso. E tudo aconteceu literalmente do dia para a noite. Em 10 de fevereiro de 1965, a companhia operava dentro de seus padrões técnicos internacionalmente reconhecidos, quando, por volta das 17h, um dos diretores – que era militar e havia sido colocado na gestão por influência da Aeronáutica – chegou ao diretor-presidente com um telegrama assinado por Castello Branco e Eduardo Gomes. No curto texto, as autoridades informavam que as concessões da Panair estavam sendo suspensas e imediatamente transferidas à Varig. À noite, no Galeão, o DC-8 da Panair já se preparava para receber os passageiros que embarcariam para a Europa. O avião não deixou o solo. Mas ninguém perdeu a viagem, pois, de algum modo, a Varig já tinha um Boeing 707 no pátio pronto para assumir as linhas da congênere. Vale lembrar que, à época, a Varig só voava para os Estados Unidos e o Japão. A substituição imediata surpreendeu.
De onde saiu a idéia da pesquisa?
D. L. S. – Foi o seguinte: no início de 2003, eu me preparava para produzir meu primeiro jornal-laboratório. Enquanto a maior parte dos colegas queria escrever sobre cinema e cultura, eu optei pela editoria de Política e Economia, pois já se discutia a fusão da Varig e da TAM e eu sempre gostei de aviação comercial. Quando pequeno – não me pergunte por quê – lia muito sobre os processos de concordata e falência das empresas aéreas americanas. Passei, então, a me perguntar por que a Varig não optava pela concordata para se reestruturar. Em pesquisa preliminar, descobri o Decreto-Lei n° 669. Não precisou muito mais para chegar à história do fechamento da Panair. Fui imediatamente fisgado. Sempre tive perfil de pesquisador e já sabia que ia dar samba, por isso paralelamente fiz também uma espécie de ‘diário de bordo’, anotando todos os avanços na pesquisa e as respectivas datas.
Como a imprensa tratou o caso na época?
D. L. S. – É preciso que se diga, a reação foi rápida e incisiva. Os maiores jornais do país publicaram editoriais ácidos, em destaque a Tribuna da Imprensa e o Correio da Manhã, que classificaram como intempestiva e ilegal a intervenção militar na empresa, medida essa que teve direito a ocupação de tropas do Exército e Aeronáutica em oficinas e hangares. O que não faltaram foram críticas, sobretudo em relação à falta de aviso prévio ou direito de defesa à Panair. Note-se que a chamada ‘Revolução’ ainda não havia completado o seu primeiro aniversário. A censura aos meios de comunicação não existia em larga escala.
A imprensa esqueceu essa data que, além de valer matéria por si só, teria até ‘gancho’ na crise atual da nossa aviação civil. Que paralelos haveria entre aquela crise e a de hoje, segundo sua pesquisa?
D. L. S. – Há diversos paralelos, mas, mais do que isso, há grandes ironias e contradições. No início dos anos 60, a aviação comercial brasileira beirava o colapso, sobretudo por conta das diferenças cambiais. Falo de um tempo em que o setor recebia pesadíssimas subvenções federais para se manter na normalidade. O governo disponibilizava um pacote anual de ajuda para reequipamento às empresas aéreas que, em 1961, foi fixado em 10 milhões de dólares, a uma taxa de câmbio de 320 cruzeiros por dólar. Acontece que nos exercícios seguintes a inflação disparou, a moeda nacional se desvalorizou e o pacote de ajuda do governo permaneceu estagnado. A situação beirou ao caos. Nem mesmo financiamentos especiais pela Carteira de Câmbio do Banco do Brasil estavam dando conta dos gastos das companhias.
Como não havia meios de ajustar o valor da subvenção, em 1963 a indústria elaborou um plano que foi aprovado pelo governo, no qual as aéreas poderiam decretar uma espécie de moratória parcial. Todas, sem exceção, enfrentavam essa crise e, dentre elas, a Panair era a que tinha as melhores chances de recuperação, segundo estudos conduzidos pela Ecotec. Mas o curioso é que, na hora de cassarem as concessões de vôo, o Banco do Brasil protestou exclusivamente os títulos da Panair. A situação das concorrentes permaneceu inalterada.
E a peculiaridade não parou por aí. Ao contrário da Varig e da Vasp, que hoje dispõem de patrimônio líquido negativo, a Panair do Brasil tinha um acervo gigantesco que superava em muito o seu passivo, e isso ficou mais do que comprovado nos autos do processo falimentar. Ela era dona da Celma, uma avançada oficina de retificação de motores que é até hoje a maior da América Latina. Tinha hangares equipados com tecnologia de ponta e uma rede de agências consulares instaladas nas mais importantes capitais européias. Também era responsável por toda a infra-estrutura de telecomunicações aeronáuticas do país e por boa parte dos aeroportos do Norte/Nordeste, que foram construídos com recursos próprios.
Tudo foi desapropriado pelos militares sem pagamento de qualquer indenização. A Celma, à época uma empresa 100% nacional, acabou privatizada e passou ao grupo GE. Já o estratégico Departamento de Comunicações foi simplesmente renomeado TASA (Telecomunicações Aeronáuticas) e desde 1996 funciona sob os cuidados da Infraero. Era um patrimônio enorme que foi violado, confiscado, esquartejado. Durante décadas, a Panair do Brasil foi a única ‘massa falida’ no país a dar lucros.
E nos arquivos da ditadura? Ainda há documentos secretos sobre o caso Panair?
D. L. S. – Certamente há arquivos sobre a Panair. Esse foi um dos grandes casos da ditadura. Mas, quando procurei informações, foi-me alegado que boa parte dos dados referentes à empresa se perderam no incêndio do Aeroporto Santos Dumont. Conveniente. Não me conformei e fui pessoalmente ao Tribunal de Justiça do Rio para estudar os autos do processo de falência, que são mantidos na 6ª Vara Cível. Os autos só sobreviveram pela boa vontade de uma funcionária que, vendo-os apodrecer num banheiro úmido, colocou-os em sacos plásticos e, depois, numa estante. Se existem arquivos? Aquele é maior processo do Fórum! O escrivão me disse que, se fossem empilhados, os autos chegariam a 10 metros de altura. Nos anos 1960, um juiz expediu a estranha ordem de enviar cópias de todas as folhas do processo ao SNI. Portanto, sim, há muita coisa guardada.
A nova Lei de Falências teria ajudado a Panair?
D. L. S. – Essa é que é a grande ironia a que me referi anteriormente. Preciso contextualizar um pouco. Em dezembro de 1968, enquanto o país tomava conhecimento do AI-5, a Panair do Brasil finalizava o pagamento das indenizações trabalhistas de seus 5 mil funcionários. Foram pagos em dobro e com recursos da própria massa, em total contraste com a lei, já que, pelo Artigo 486 da CLT, a União é que deveria ter assumido esse pagamento. Logo em seguida, os advogados da empresa perceberam que a Varig e a Cruzeiro do Sul, arrendatárias dos seus jatos DC-8 e Caravelle, pagavam uma quantia irrisória à massa falida. Assim que entraram em juízo pleiteando a atualização dos valores, o governo federal baixou o Decreto-Lei n° 496, que desapropriou as aeronaves.
Foi, sem dúvida, uma tentativa de silenciar. Como os valores pagos pela Varig e a Cruzeiro permaneceram inalterados, alguns autores sugerem que elas participaram da edição da lei. Mas o que a União não percebeu ao baixar o decreto é que, ao tomar posse dos aviões, estava automaticamente tirando a Panair da falência, pois os valores do que foi confiscado superavam o crédito reivindicado nos autos. O juiz reconheceu a dívida como paga e a companhia entrou com pedido de concordata suspensiva, na tentativa de voltar a operar. Isso foi no dia 2 de junho. A União, vendo livre a sua presa, reavaliou o que foi desapropriado, reduzindo o valor das aeronaves, e converteu os dólares da dívida não mais à cotação do dia da abertura da falência, mas à de 1969. De quebra, no dia 3 de julho, baixou o Decreto-Lei n° 669, que proibia especificamente empresas aéreas de impetrar concordata. No meio jurídico, tornou-se conhecido como ‘Decreto Panair’, pois só se aplicava a ela. O juiz aceitou docilmente a nova legislação, reviu sua própria sentença que já havia transitado em julgado e, aplicando efeito retroativo ao decreto, denegou o pleito da empresa. Essa peça casuística de lei vigorava até o dia 8 de fevereiro, impedindo que a Varig – a principal beneficiária do fechamento da Panair – utilizasse o recurso. Isso é outro dado importante que nenhum jornal lembrou.
Saulo Ramos diz no prefácio que você usou muito diálogo; como foi essa reconstituição?
D. L. S. – Optei pela linguagem do jornalismo literário, com personagens, diálogos e narração em terceira pessoa. Essas falas foram retiradas de entrevistas, declarações à imprensa, documentos jurídicos, cartas, autos do processo de falência etc. Quase não há interferência minha. Procurei ser o mais verossimilhante possível. Meu intuito era cativar o leitor e ter mais liberdade na narração. Acho que não seria capaz de sensibilizar se adotasse uma fórmula mais científica.
Você achou muita gente da época disposta a falar? É gente amargurada?
D. L. S. – Sim, achei muita gente amargurada. Estamos falando de pessoas que tiveram seus direitos mais básicos violados. E os funcionários não tratavam a Panair como mera empregadora. Era um verdadeiro caso de amor. Tanto é verdade que até hoje, na data de aniversário da empresa, eles se reúnem para comemorar… 40 anos depois! É um ‘case’ empresarial único, talvez no mundo. Mas também encontrei gente muito ponderada, isenta e racional. Em todos os momentos me preocupei em confrontar os testemunhos, pois, de fato, apareceram versões fantasiosas ou exageradas. Procurei também pessoas ligadas à Varig, juristas (como Saulo Ramos), pesquisadores, historiadores etc. Só não consegui contato com fontes militares.
Morar em Campinas não complicou a pesquisa, já que a sede da Panair era no Rio?
D. L. S. – Realmente, sempre penso que se eu morasse no Rio e fosse mais auto-suficiente, já teria feito um estrago maior. Digo isso pois não pude mergulhar 100% no caso. Em primeiro lugar, pelas limitações impostas pela distância geográfica. Depois, porque descobri coisas e pessoas sobre as quais não pude escrever, temendo alguma sanção contra minha família. Tem muita gente influente até hoje que, lá atrás, esteve envolvida no fechamento da Panair.
E sua pouca idade, foi outro fator complicador? Por exemplo, como Saulo Ramos tratou um pesquisador tão jovem?
D. L. S. – Ele me recebeu muito bem, acredito, justamente por não saber da minha idade. Tivemos algum contato por telefone e e-mail, depois lhe enviei uma cópia do livro. Já os veteranos da Panair, tive que conquistar aos poucos. Acho que no início não me levavam a sério. Mas logo viram a seriedade e o comprometimento.
A que você atribui o desinteresse da imprensa sobre um assunto tão trepidante?
D. L. S. – Não sei se o desinteresse é da imprensa. A imprensa apenas não acompanhou o desenrolar do episódio a fundo. Talvez, não conseguiu enxergar a sua atualidade, os seus meandros. E o momento não poderia ser mais oportuno para o Caso Panair vir à tona. Acho que a principal interessada no abafamento da questão é a União. Veja que os herdeiros dos acionistas da empresa movem ações pesadas contra o governo. Pedem indenizações pelos danos causados na ditadura, pelos confiscos, pelo pagamento indevido das indenizações trabalhistas. O valor é incalculável. Talvez, impagável. É seguro dizer: o mesmo crédito que a Varig tem com a União, a União tem com a Panair do Brasil. E esses processos judiciais ainda tramitam no Supremo sem conclusão à vista.
Fiquei pasmo quando, já às vésperas de terminar a redação do livro, chegou a mim uma minuta de medida provisória redigida em 1996 que previa o ressarcimento à empresa. Seria uma saída mais ou menos honrosa para o impasse da União. Mas a MP não foi aprovada. Confesso que isso me estarrece. Durante a ditadura, entende-se, pela conjuntura político-ideológica, a má vontade do governo com a Panair do Brasil. Mas me soa imperdoável que os governos atuais tenham tido a chance de corrigir esse grande erro histórico e optaram por não fazê-lo. Faz-nos refletir sobre o atual estado de democracia, não?
Pergunta que não quer calar
J. Saulo Ramos (*)
[Prefácio para Pouso forçado: a história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo regime militar, de Daniel Leb Sasaki, ainda sem editora]
Esta obra, de Daniel Sasaki, é impactante, primeiro porque é verdade e, segundo, porque é uma verdade arrancada das entranhas da ditadura militar cuidadosamente escondida inclusive pelos governos democráticos seguintes. Por quê?
Porque admitir a verdade custará muito caro aos cofres públicos federais tal a enormidade das lesões que seus agentes causaram ilicitamente ao patrimônio da Panair. Em conseqüência, há um consciente conluio em perpetuar a imoralidade em defesa do Tesouro Nacional. No Brasil, existe esta velha cultura: a prática da inconstitucionalidade ou ilegalidade, ou abuso, deve ser rigorosamente punida, salvo se os cofres públicos tiverem que arcar com indenizações. Neste caso, tudo passa a ser legítimo, ou finge-se que é.
Na porta do Tesouro Nacional deveriam escrever a frase: ‘É assegurada impunidade aos atos ilícitos indenizáveis pela União’.
Neste trabalho, o jovem Daniel Sasaki narra em detalhes a tragédia da Panair, de seus proprietários, de seus funcionários, de suas conquistas no Brasil e no exterior. Tudo violado, roubado, destruído, porque os militares não gostavam dos acionistas brasileiros que nacionalizaram a companhia americana ao adquirir o controle acionário da empresa aérea mais eficiente do Brasil.
E desejavam beneficiar o concorrente, Ruben Berta, dono da Varig, que claramente corrompeu os brigadeiros encarregados da execução do contrato de concessão das linhas aéreas. No dia em que o Governo cassou as concessões da Panair, a Varig já estava com aviões prontos para realizar os respectivos vôos na mesma noite das cassações. Ruben Berta fora informado antes do Diário Oficial.
Sem poder voar, a Panair requereu concordata, distribuída à 6ª Vara Cível do Rio de Janeiro, naquele tempo Estado da Guanabara. Pois o Ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Eduardo Gomes, foi pessoalmente ao fórum carioca falar com o juiz da causa. Proibiu-o de deferir o pedido e mandou decretar a falência. Até então, um homem de respeito, famoso pelo slogan de candidato ‘o preço da liberdade é a eterna vigilância’, o brigadeiro mergulhou na frase de Paulo Brossard: ‘A Revolução perdeu a honra’!
A partir daí, a tragédia brasileira submetida a um tsunami de ilegalidades monstruosas, praticadas por magistrados, militares e, sobretudo, pelo Governo da ditadura. Os juizes da 6ª Vara Cível, do Rio, uns atrás dos outros, tiveram diarréias mentais e resolveram submeter-se aos ditames dos militares. Um desses magistrados resolveu ganhar dinheiro com a situação. Não podendo reagir, agiu. Destituiu o Banco do Brasil de síndico da falência e, no mesmo dia, nomeou seguidamente três credores para o cargo. Misteriosamente as três pessoas não aceitaram. Tudo no mesmo dia. Judiciário ágil, de dar inveja. Diante das três recusas, a lei permite ao juiz nomear livremente quem bem entender. Nomeou, claro, um militar que, por sua vez, convocou três ou quatro colegas, todos oficiais da reserva, para o exercício da função em ordem unida.
Essa ‘junta militar’ encarregou-se de promover a liquidação dos bens da Panair, sobretudo das suas agências no exterior. Sumiu com tudo. Para não dizer que dilapidou inteiramente o patrimônio material da Panair, o síndico prestou contas desta operação nas agências internacionais: apresentou um saldo positivo de quinhentas libras.
Este trabalho mostra igualmente a dignidade e coragem com que oficiou, no caso, o Ministério Público do Rio de Janeiro, em contraste com o representante do Ministério Público Federal, apenas um traste, que falsificou dívidas ‘novas’ da falida para que a União, que tudo havia recebido, não se retirasse do processo. Coisas vergonhosas. O Ministério Público estadual cumpriu galhardamente com seus deveres institucionais. Falhou, infelizmente, a magistratura. E falhou feio.
Em plena operação, a Panair mantinha duas empresas preciosas: a Celma, especializada em retificar motores de avião, em seus serviços de manutenção e consertos técnicos, usados pela própria FAB; e uma empresa que cuidava das telecomunicações, única na América Latina a dar cobertura aos vôos internacionais que se aproximavam do continente. A Celma foi invadida por tropas militares em operação de guerra.
A Panair construiu aeroportos no Norte e Nordeste. Tudo lhe foi tomado. Sem, é claro, um centavo de indenização. Seus aviões e hidroaviões, que faziam o transporte aéreo na Amazônia e Nordeste, foram destruídos. Brasileiros perderam mais que a empresa.
Depois de todos estes fatos, descobriu-se o óbvio: a Panair tinha recursos suficientes para pagar suas dívidas e, assim, transformar a falência em concordata. Pagaria todos os credores restantes e os sócios ficariam com o saldo. Requerido o remédio legal, o Governo baixou um decreto-lei proibindo que companhias aéreas pedissem concordata. Está em vigência até hoje.
Todos esses fatos e muitos e muitos outros, igualmente estarrecedores, são documentadamente expostos nesse magnífico trabalho. Daniel Sasaki narra tudo em linguagem simples, quase coloquial. E usa o diálogo para reconstituir situações entre os personagens desta história, evitando cansar o leitor com trechos somente descritivos.
Acaba dando razão ao genial espanhol Sofocleto: ‘Escrever é falar sem ser interrompido’. Aqui, o resultado é igual: a leitura prende de tal forma que não permite interrupção.
Sobre vários fatos inexplicáveis e inexplicados da história, como o assassinato de Kennedy, e outros de grandes injustiças, que impunes ficaram, o caso da Panair sempre retorna à pergunta que não quer calar. A grande injustiça cala fundo, mas não perde a voz. Se o Brasil precisa conhecer os arquivos de seu passado, neste livro encontrará um deles. E um dos mais dolorosos. [Serra Negra, 2005]
(*) Jurista