Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sonho de justiça adiado

O principal recurso legal utilizado pelas companhias aéreas americanas para contornar a falência – o pedido de concordata judicial – não estava à disposição da Varig até o dia 8 de fevereiro. Hoje, a empresa festeja a aprovação da Lei de Falências. No entanto, ironicamente, foi aquele mesmo impedimento que a projetou para o sucesso, derrubando a então famosa Panair do Brasil, com interferência direta do governo militar. O caso completa agora 40 anos, mas não foi devidamente lembrado pela imprensa.

Nos Estados Unidos, o chamado Capítulo 11 do Código Federal de Falências permite que as empresas aéreas endividadas continuem operando enquanto se reestruturam, protegidas dos credores. Foi o que fizeram a US Airways e a United Airlines – esta, a segunda maior companhia aérea do mundo. Costuma funcionar. Mais enxuta, a US Airways encomendou 120 aviões da Embraer em 2003.

Diante de sua condição atual, essa é a saída mais viável para a Varig – a maior da América Latina –, que acumula uma dívida de quase R$ 7 bilhões. Dentro dos padrões da legislação norte-americana, a companhia poderia ganhar tempo renegociando prazos de pagamento dos títulos vencidos. Mas, no Brasil, perdurava o peculiar Decreto-Lei n° 669, promulgado em 3 de julho de 1969 pelo regime militar, e que proibia especificamente empresas aéreas de recorrer à concordata. Em seu primeiro artigo, a norma estipulava:

‘Não podem impetrar concordata as empresas que, pelos seus atos constitutivos, tenham por objeto, exclusivamente ou não, a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou de infra-estrutura aeronáutica’.

Reviravolta na história

O que torna curiosa a situação da Varig são as condições sob as quais a legislação foi criada. Na época, corria na Justiça o processo de falência da Panair do Brasil, companhia aérea fechada em 10 de fevereiro de 1965 sem respaldo legal por determinação do marechal Castello Branco e do então ministro da Aeronáutica, brigadeiro Eduardo Gomes. A Varig, que assumiu os vôos internacionais da congênere no mesmo dia da cassação, beneficiou-se do arbítrio militar: passou a voar para a Europa e a África. Depois, herdou ainda hangares, aviões e agências, estabelecendo um monopólio no setor que durou 30 anos.

O advogado Saulo Ramos, ministro da Justiça do governo Sarney, acompanhou o caso. Segundo ele, pouco após a edição do AI-5 comprovou-se, perante o juízo da falência, que a Panair operava em perfeitas condições técnico-financeiras quando cassada e ainda dispunha de bens e capital para ressuscitar. ‘Vencidas todas as etapas do processo, paga a União, a Panair preparou-se para requerer concordata suspensiva, com a concordância de todos os demais credores, uma vez que seu patrimônio respondia pelas dívidas remanescentes e já havia pago, entre outras, e com recursos líquidos da massa, as obrigações trabalhistas’, diz o jurista. ‘Diante dessa realidade, o governo federal baixou o Decreto-Lei no 669. Não foi preciso escrever o nome da Panair no decreto-lei, que passou a constituir-se uma das teratologias do ordenamento jurídico brasileiro’.

Em irônica reviravolta na história, a legislação, criada por ato político em perseguição aos acionistas da Panair – os empresários Celso da Rocha Miranda e Mário Wallace Simonsen –, nos últimos tempos vinha prejudicando a Varig, a principal beneficiária do fechamento e que, sugerem alguns, operou em conluio com os militares.

Dos tempos da Panair

Notícia antiga é história, julga a imprensa. Mas o assunto voltou a repercutir no início de fevereiro, quando a presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, Graziela Baggio, acusou as companhias mais novas de fazerem lobby para pressionar o governo a vetar parte da Lei de Falências com o intuito de acelerar a quebra da Varig. ‘A pressão para o veto está vindo de outras empresas que querem a Varig no chão e de uma parcela do governo que apostou na fusão com a TAM’, disse a sindicalista ao site Investnews. Para ela, vetar significaria manter um ato da ditadura.

Será? Saulo Ramos acredita que o próprio Decreto-Lei n° 669 beneficiou a Varig, e só não foi revogado antes porque a União está sujeita a reconhecer a procedência dos processos judiciais abertos pelos herdeiros da Panair, ainda hoje em trâmite no STF. ‘Admitir a verdade custará muito caro aos cofres públicos federais, tal a enormidade das lesões que seus agentes causaram ilicitamente ao patrimônio da Panair’, afirma o advogado.

Em plena discussão sobre a abertura dos arquivos da ditadura e da crise da aviação comercial brasileira, o Caso Panair completa 40 anos. Houve dilapidação e confisco de patrimônio, edição de decretos-leis casuísticos aplicados com efeito retroativo, desentranhamentos nos autos do processo falimentar. Mesmo assim, esse episódio sombrio da história brasileira recente continua escondido. Parece desalentador. Já cantava Elis Regina: ‘Descobri que minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair’.

******

Jornalista, autor do livro Pouso forçado: a história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo regime militar