Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O mundo é dos brancos, nós somos os penetras

Na peça teatral Esse Perverso Sonho da Igualdade, de Joel Rufino dos Santos – que fala da revolta dos alfaiates ocorrida na Bahia do século 17 –, um dos revoltosos entra em desespero e grita: ‘O mundo é dos brancos, nós somos os penetras.’ É assim que, às vezes, os não brancos da nossa sociedade se sentem: excluídos na invisibilidade. Ao andarmos, por exemplo, pelo Congresso Nacional, símbolo da nossa democracia, constatamos nossa invisibilidade. E aí, perguntamos: por que isso acontece?

Existe uma sutileza nesse olhar que só sente quem está do lado de cá. Da mesma maneira, sentimos a intenção de apagar o passado escravocrata deste país. Não dá. São apenas 122 anos. As marcas estão aí para quem quiser ver. Milhares de negros não conseguiram atravessar o Atlântico, ficaram no meio do mar, almas perdidas e esquecidas e que clamam por um reconhecimento histórico. Impossível dizer que a escravidão não aconteceu no nosso país, que foi o sustentáculo da fortuna de várias famílias.

Todos os povos escravizados, ou que sofreram um grande atentado em sua escola evolutiva, fazem questão de manter o fato aceso para que ninguém esqueça. Os judeus, com o seu Holocausto, são exemplo vivo disso, com seu museu para relembrar o passado de dor. Todos os anos esse fato é rememorado, vários documentários e filmes são feitos. É a história. E eles contam a sua história, fato que, no nosso caso, não temos a oportunidade de fazer: sermos sujeitos da nossa própria história. Infelizmente, nós, negros, não contamos a nossa história. Ela é contada pelos não negros, que escrevem teses, publicam livros, se tornam doutores na questão racial. Mas é a outra versão da história, e não a nossa.

Durante muitos anos vivemos sobre o véu da democracia racial. Foram anos de luta até admitirmos a desigualdade e o racismo. Graças à atuação de uma geração do movimento negro brasileiro, conseguimos colocar a questão racial em pauta. No entanto, a resistência em discutirmos o assunto ocasionou um hiato muito grande no atendimento de nossas reivindicações.

O racismo é uma serpente de muitas cabeças. Damos um golpe no seu corpo e ela se multiplica. É preciso estar atento e forte como diz a canção. O racismo é uma pena de ave para os brancos e uma pata de elefante para os negros. Não existe nada, como alguns querem nos fazer acreditar. Levou muitos anos para que o Brasil admitisse ser um país onde existe o racismo. Agora querem negar que existe raça. Somos todos morenos, mestiços, miscigenados. Ouvimos a todos os momentos as pessoas dizerem: sou descendente de italiano, espanhol, alemão, japonês etc., etc. Bem, então somos mestiços só na primeira página dá estórias. Na página seguinte, tudo muda. Claro que temos que admitir a miscigenação no Brasil e consequentemente uma mistura de raças. O branco, o negro e os indígenas. Bem, uma mistura de raças.

Então se admitimos que há uma mistura de raças e que existe racismo, como não existe raça?

Alguns pregam que estamos querendo racializar o Brasil e dividi-lo. A pergunta é a seguinte: existe um Brasil igual? Creio que não. Então precisamos lutar para que essa igualdade exista e que todos possam participar. Mas nem sempre tratar os iguais igualmente dá certo. Às vezes é necessário apressar os acontecimentos, tomar medidas urgentes.

Esse é o caso das ações afirmativas. Só com elas os negros poderão participar ativamente da divisão econômica no Brasil. As nossas reivindicações estão em análise no Supremo Tribunal Federal. Se a decisão for favorável, avançaremos; se for contrária aos nossos interesses, acataremos.

No entanto, mesmo sem uma decisão, vários órgãos de imprensa já tomaram partido e executam uma campanha sistemática e feroz contra as ações afirmativas. Ainda bem que existem alguns colunistas nesses órgãos de imprensa que fazem questão de ter posição favorável às nossas questões. E como não temos nenhum veículo de imprensa, estamos em desvantagem em conseguirmos espaço na mídia para colocarmos o nosso ponto de vista.

Além disso, temos os novos especialistas em questões raciais, pessoas que nunca escreveram e não têm nenhum conhecimento de nossas causas, publicam artigos e livros, apoiados por essa mesma mídia, nos taxando de racialista. Ainda bem, que a venda deles é ínfima e não abala a luta daqueles que acreditam ser a democracia o equilíbrio de opiniões e espaços.

Na década passada, ficamos ilusionados pela entrada no século 21. Com certeza, na medicina, na ciência e outras modalidades entramos nesse século. Mas, estamos atrasados nas relações humanas. Parece que nada mudou. Os conflitos mundiais estão aí para provar. A grande novidade foi a eleição de um negro, algo até então impensável, para a presidência do Estados Unidos. Esperamos que esses ventos de mudanças cheguem por aqui.

O Brasil está deixando de ser o país do futuro e entrando no clube das nações do presente. Mas para entrar definitivamente no novo século, precisamos incorporar essa leva de 49% de negros e pardos. Sem isso não tem como avançar e se tornar um país competitivo mundialmente. Zumbi, Machado de Assis, Juliano Moreira,Tia Ciata, Lima Barreto, Antonio Rebouças, Cartola, Lélia Gonzales, Carolina de Jesus, Mãe Menininha do Gantois, Aleijadinho, Pixinguinha e tantos outros e outras clamam por uma verdadeira democracia racial.

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Ator, diretor e presidente do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro – Cidan