Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O rei do bairro

Caso raro entre trabalhadores da palavra, o escritor e jornalista mexicano Carlos Monsiváis era logo reconhecido nas ruas, sobretudo nas do seu velho e querido bairro, Portales, ao sul da Cidade do México, por seu jeitão desengonçado, cabeleira branca desgrenhada, mas sempre pronto para o abraço de um vizinho ou a troca de ideias com um jovem admirador. Pela aparência algo descuidada ninguém daria muita coisa por aquela figura morena e encorpada, mas nela se concentrava uma das mais luminosas cabeças do México moderno, só superada, segundo alguns estudiosos, por Octavio Paz.

De fato, Monsiváis, falecido no sábado (19/6), de uma longa agonia devida a uma fibrose pulmonar, foi um escritor e jornalista prodigioso, tanto no volume como no conteúdo rico e diversificado, com destaque para os gêneros da crônica e do ensaio, nos quais começou a brilhar com seu primeiro livro importante, Dias de guardar, de 1970.

Intelectual de esquerda

Dessa época até maio passado, quando foi internado num dos grandes hospitais da capital mexicana, ‘Monsi’, como o chamavam os amigos mais chegados, entre eles a escritora Elena Poniatowska e o poeta José Emilio Pacheco, escreveu livros de crônicas, história, biografias (Frida Kahlo, o cantor Pedro Infante, os poetas Amado Nervo e Carlos Pellicer), fez crítica literária, muito voltado, com um olhar sagaz, mas respeitoso, para os aspectos mais populares da cultura mexicana, o lado kitsch dos mitos venerados na periferia – história nacional, práticas religiosas, artes, culinária, linguajar, costumes domésticos, música ranchera.

Seus perfis de figuras idolatradas pelo povo, como Cantinflas e Maria Félix, são antológicos. Em matéria de paixões populares, aliás, ele só não escreveu sobre touros e touradas, pois considerava todo o ritual festivo e colorido ‘de las tardes taurinas’ uma prática bárbara, cruel.

Colunista dominical do jornal El Universal nos últimos anos, Monsiváis fazia um jornalismo corajoso, criticando, com fina ironia, os desmandos e abusos de políticos e governantes corruptos e ineficazes, cada vez mais angustiado com a indigência e a falta de perspectivas das classes pobres do país diante dos desastres perpetuados pelo sistema capitalista. Era um intelectual de esquerda, mas honesto, e por isso mesmo fustigava o pensamento progressista local, omisso quanto à violação dos direitos humanos em Cuba.

As máscaras mexicanas

Profissional freelance, homem de trato discreto, rodeado por seus amados gatos no casarão onde morava sozinho, Monsiváis, além de colaborar com textos para publicações importantes e até menores, com frequência participava de debates políticos e culturais no rádio e na TV. Não era carismático, expressava-se meio trancado, mas todo mundo queria saber sua opinião sobre os temas do momento.

Andava a pé pela cidade (não dirigia, pegava táxis), era um bolo de festa, prestigiava as noites de autógrafos de escritores amigos, escrevia prefácios e orelhas, doava livros à biblioteca do bairro. Anos atrás, criou um museu, El Estanquillo, no centro histórico da capital mexicana, para abrigar suas várias coleções de revistas e jornais, além de fotos e objetos pessoais.

Conhecia muito da literatura universal e a boa poesia mexicana, sobre a qual fez uma antologia essencial, La poesia mexicana del siglo XX. Um de seus mais belos livros é uma pequena biografia do poeta mexicano Salvador Novo, El marginal en el centro, homossexual assumido, estridente em sua ousadia temerária para a época, anos 1940.

Monsiváis não tinha um texto dos mais fluentes. Escrevia bem, claro, mas com uma sintaxe algo complexa, difícil de entender numa primeira leitura, com significados não poucas vezes cifrados. Mas esse estilo meio empedrado não diminuía o interesse dos leitores, os mais jovens incluídos, que nele, Monsiváis, buscavam a resposta para os perenes mistérios por trás das máscaras mexicanas referidas pelo mestre maior, Octavio Paz.

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Jornalista e escritor, foi correspondente de Veja no México e escreveu livros empresariais; é também tradutor literário